São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

Valsa buarquiana


Mas... Mas Chico Buarque é Chico Buarque, é gênio, portanto... Como é mesmo que termina a letra?


CHICO BUARQUE aniversaria nesta sexta-feira. Por mais parabéns e presentes que o Mestre receba "nesta data querida", somos nós, seus eternamente gratos conterrâneos cinquentões, sessentões etc., que nos sentimos presenteados, desde sempre. Evoé, Chico!
Pois bem. Dia desses, depois de um bocado de tempo, ouvi novamente um dos mais belos discos das duas últimas décadas: "Valsa Brasileira" (de 1991), da emocionante Zizi Possi. Primoroso, o disco é um desfile de arranjos e interpretações de extrema sensibilidade e competência. Uma das obras do CD é justamente "Valsa Brasileira" (música de Edu Lobo, letra de Chico Buarque).
E aí, ao "reouvir" a canção... Redescobri a beleza da poesia presente nessa letra de Chico e, sobretudo, o competente bordado linguístico, apoiado no manuseio de dois tempos verbais. Acompanhe: "Vivia a te buscar / Porque pensando em ti / Corria contra o tempo / Eu descartava os dias / Em que não te vi / Como de um filme / A ação que não valeu / Rodava as horas pra trás / Roubava um pouquinho / E ajeitava o meu caminho / Pra encostar no teu / Subia na montanha / Não como anda um corpo / Mas um sentimento / Eu surpreendia o sol / Antes do sol raiar / Saltava as noites / Sem me refazer / E pela porta de trás / Da casa vazia / Eu ingressaria / E te veria / Confusa por me ver / Chegando assim / Mil dias antes de te conhecer".
Confesse, caro leitor: você tomou um choque quando, de repente, a letra foi do pretérito imperfeito do indicativo ("vivia", "corria", "descartava", "rodava", "roubava", "ajeitava", "subia", "surpreendia" e "saltava") para o futuro do pretérito ("ingressaria" e "veria"), não? Pois esse é um dos momentos nobres da letra. O valor básico do pretérito imperfeito do indicativo é o de indicar fato passado cujo término não se define; por isso mesmo, o imperfeito costuma indicar processos que têm aspecto frequentativo (ou iterativo -que o leitor me perdoe os termos técnicos!). Quando se diz, por exemplo, "Eu saía de casa às 7h e chegava à escola às 9h", indica-se que, num período razoavelmente amplo do passado, a saída de casa e a chegada à escola eram frequentes.
Convém lembrar que, ao pé da letra, "imperfeito" (do latim "imperfectu") significa "não totalmente feito". Voltemos à letra de Chico. Com a sucessão de formas do imperfeito, revela-se que as ações pretéritas do personagem ("rodava", "saltava") eram frequentes e executadas com um intuito, revelado no fim da letra por verbos flexionados no futuro do pretérito ("ingressaria" e "veria"), tempo cujo valor básico é o de situar uma ação ou estado no futuro em relação a um momento passado. Assim, o ato de ingressar na casa e o de ver confusa a amada se situam no futuro em relação aos atos expressos pelo pretérito imperfeito.
Mas... Mas Chico Buarque é Chico Buarque, é gênio, portanto... Como é mesmo que termina a letra? Vamos lá: "Confusa por me ver / Chegando assim / Mil dias antes de te conhecer". Convém lembrar que no início a letra diz que o personagem corria contra o tempo (literalmente), descartava os dias, rodava as horas pra trás etc. Na verdade, o tempo é um brinquedo na mão do poeta, e a gramática não dá conta do talento dele.
Com mestria, Chico mostra um personagem que já tem o amor interiorizado, já sabe da grandeza de seu sentimento, já sabe como é a amada que busca, conhece-a antes de conhecê-la, antes que se materialize. Evoé, Chico, hoje e sempre! É isso.

inculta@uol.com.br


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