São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Vidas em implantação"


É preciso ficar atento quando se lança mão do gerúndio, do particípio, do relativo "que", do possessivo "seu"...

A CONCESSIONÁRIA que administra a rodovia Presidente Dutra anuncia que brevemente (ufa!!!) haverá radares ao longo da autopista. Foi a querida Teresa Garcia, editora-chefe do "Jornal Hoje", da TV Globo, que me deu a notícia, com a fiel transcrição desta preciosidade, presente nos cartazes afixados pela NovaDutra em vários pontos da estrada: "Radares que salvam vidas em implantação".
Brinquei com Teresa, dizendo-lhe que a frase poderia decorrer de um ato falho da concessionária, talvez sabedora de que, quando se entra nessa (e em quase todas as "rodovias" brasileiras), a vida passa a estar por um fio. Seja pela precariedade das "estradas", seja pelo comportamento dos nossos irresponsáveis motoristas, estar numa "autopista" brasuca é ter a vida em constante "implantação" -é pura roleta-russa.
A esta altura o leitor certamente já captou o xis do problema: estamos de volta à "alegre fábrica" de frases estruturalmente ambíguas ou de duplo sentido explícito mesmo, sem contar aquelas que não transmitem o sentido desejado. Uma dessas é ouvida a bordo dos nossos aviões de carreira: "Desligue o seu celular mantendo-o desligado durante todo o vôo". De acordo com a frase, o modo de desligar o celular é mantê-lo desligado durante o vôo (!!!???). Que tal a velha conjunção "e"? Vejamos: "Desligue o seu celular e mantenha-o assim/desse modo durante o vôo". Às vezes, uma simples inversão resolve o problema. Em "Ele atropelou um cavalo correndo pela avenida", por exemplo, há uma ambigüidade que pode ser desfeita com a inversão da ordem das orações: "Correndo pela avenida, ele atropelou um cavalo". Em outros casos, embora se limite à estrutura, a ambigüidade deve ser eliminada. Uma frase como "Ele encontrou o gato varrendo a rua" deve ser alterada para "Varrendo a rua, ele encontrou o gato".
E a coisa não pára por aí. Pense nesta frase: "Ela encontrou os filhos vendo televisão". Quem estava vendo televisão? Ela ou os filhos? Se era ela que estava vendo televisão, pode-se entender que os filhos estavam desaparecidos e foram vistos por ela num programa de TV.
Antes que me esqueça, voltemos à frase da NovaDutra. Parece razoável pensar em algo como "Estamos implantando ("instalando" parece melhor, não?) radares, que salvam vidas" (ou "para salvar vidas"). Para ficar mais perto da frase original, uma hipótese viável seria "Radares em instalação, para salvar vidas" (ou, com mais ênfase, "Para salvar vidas, estamos instalando radares").
Há algum tempo, um site publicou esta pérola: "Ex-cirurgião plástico afirma ter sido perseguido por mulher esquartejada...". Nem no mais sombrio dos filmes de terror! O problema está no duplo valor de "esquartejada" (adjetivo e particípio).
Seria mais seguro algo como "Ex-cirurgião afirma que foi/era perseguido por mulher que ele esquartejou".
Se você pensou em algo como "Ex-cirurgião afirma que esquartejou mulher porque ela o perseguia", é bom parar para pensar. Com o emprego do "porque", cria-se uma relação de causa e conseqüência que talvez não corresponda aos fatos ou ao cerne da afirmação do ex-cirurgião.
A conclusão é a de sempre: reler não faz mal a ninguém. Criar certos dispositivos de "defesa" também é bom. Um dos dispositivos pode ser, por exemplo, o disparo automático do alarme em caso de uso de gerúndio, de particípio, do relativo "que", do possessivo "seu"... É isso.

inculta@uol.com.br


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