São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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Síndrome do lazer


Viciados em trabalho sofrem de sentimento de culpa e ansiedade, que impedem relaxar nas horas vagas


Luiz Carlos Murauzkas/Folha Imagem
O empresário Antônio Ermírio de Moraes trabalha em seu escritório no feriado da Proclamação da República


GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Durante a lua-de-mel na Europa, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, atualmente um dos homens mais ricos do mundo, sentiu-se incomodado em só desfrutar dos prazeres do matrimônio e levou sua mulher, Regina, para conhecer usinas de aço no interior da Áustria -um programa não exatamente romântico.
Passados 35 anos daquelas inusitadas incursões siderúrgicas numa lua-de-mel, o casal conseguiu, enfim, tirar férias completas e viajou para a Suíça. Não deu certo.
Incomodado com tanto lazer disponível, Antônio Ermírio mostrava sinais de irritação, não sabia o que inventar para passar o tempo, reclamava da paisagem, do hotel, da comida, ligava para o Brasil interessado nos negócios. A solução para evitar o estresse foi encurtar as férias.
O empresário está com 73 anos, mas não mudou de atitude. Acorda ainda de madrugada, por volta das 4h30, sem despertador, acompanha as notícias no rádio, na TV, lê os jornais. É, na maioria das vezes, o primeiro a chegar no escritório, no centro de São Paulo.
Como se não fosse suficiente administrar um dos mais importantes conglomerados privados do Brasil, dá 20 horas por semana para administrar o Hospital Beneficência Portuguesa.
Nos sábados e domingos, divide-se entre o escritório e o hospital. Nas horas vagas do final de semana, lê relatórios e livros sobre economia. "Sinto um aperto só em pensar em ficar sem fazer nada. Dá uma sensação de inutilidade", afirma. Conta literalmente nos dedos as vezes em que se jogou na piscina de sua casa: foram quatro os mergulhos históricos.
Apesar da obsessão pelo trabalho, Antônio Ermírio conseguiu preservar a saúde, manteve o casamento com Regina, com quem teve nove filhos, e não pensa em mudar de hábitos.
Mas o empresário sofre de um distúrbio batizado de "síndrome do lazer": incapacidade de relaxar nas horas vagas. Essa síndrome é pesquisada na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde se criou, na Faculdade de Educação Física, o Departamento de Estudos do Lazer.

Sintomas
Antônio Ermírio lida com a síndrome lotando sua agenda de compromissos. Os pesquisadores notaram que muitos workaholics -obcecados por trabalho- apresentam determinados sintomas quando se aproximam as férias, os feriados prolongados ou apenas os finais de semana.
Segundo Carlos Bramante, do Departamento de Estudos do Lazer da Unicamp, algumas pessoas, especialmente empresários e executivos, passam a ter dores musculares, enjôo, enxaqueca, gripes. "Eles sentem a combinação de tédio e ansiedade", diz Bramante. O lazer é acompanhado de um sentimento de culpa.
O empresário Hélio Mattar, presidente da Fundação Abrinq, decidiu mudar de vida depois de ver sinais de distúrbios psicológicos nos filhos -mais especificamente problemas de aprendizado (leia texto nesta página).
"Eu sentia dor no corpo, cansaço, em meio à ansiedade, na expectativa da volta da segunda-feira", lembra-se Mattar.
Para defender-se dessa ansiedade, transferia, nos finais de semana, o escritório para sua casa, mantendo quase um ritmo normal de trabalho. Sentia que, parado, seria vítima de uma tragédia econômica.
Tinha o hábito de carregar pastas pesadas até mesmo nas férias, nunca tiradas integralmente -e sempre acompanhadas de um visível incômodo aos olhos dos familiares. O casamento não conseguiu sobreviver.

Pesquisador
A idéia de síndrome do lazer chegou ao Brasil graças ao psicólogo Ad Vinngerhoets, da Universidade de Tilburg, da Holanda, durante encontro realizado pela ABQV (Associação Brasileira de Qualidade de Vida).
Num estudo considerado único no mundo, ele calculou que, em seu país, 3% das pessoas seriam vítimas da doença. Essa proporção, segundo ele, não seria diferente em outros países ricos, apartir dos relatos que ouve em seminários sobre estresse.
A presidente da ABQV, Cecília Shibuya, contratada por grandes empresas para criar programas de qualidade de vida, começou a medir os sinais de síndrome de lazer entre executivos brasileiros.
Aplicou um questionário para 211 deles neste ano e detectou o efeito devastador da incapacidade de relaxar: 85% reclamaram da sobrecarga de trabalho e da dificuldade de encontrar tempo, da distância em relação aos filhos; 75% afirmaram que bebem mais do que deveriam.
"O problema é que, mesmo quanto têm tempo, a maioria deles está pensando no trabalho, epor isso precisa de fugas como a bebida", afirma Cecília.
Na pesquisa, ela quis saber quais eram os passatempos preferidos dos executivos: 11% disseram que passam muitos horas na frente do computador, navegando na internet. É algo que, na maioria das vezes, significa necessidade de estar ligado. A imensa maioria dos entrevistados revela que pratica esporte, mas basicamente nos finais de semana.
"A sociedade valoriza o trabalho como valor fundamental. Isso faz com que muita gente mascare a obsessão como uma virtude", afirma Bramante.

Diferenças
Para a psicóloga Yvette Piha Lehman, do Labor (Laboratório de Estudos sobre o Trabalho e Orientação Profissional), da Universidade de São Paulo, a compulsão pelo trabalho está crescendo. Mas o fenômeno deve ser diferenciado em pelo menos dois tipos.
Há um tipo de trabalhador que sofre com a insegurança, especialmente nos períodos de desemprego mais acentuado. "É o sujeito que não pode ir embora antes do chefe e que acaba trabalhando em função do estresse do outro."
Existe o cronicamente compulsivo, haja ou não crise econômica. "São aqueles motivados que direcionam sua libido para o trabalho. Todos os demais espaços sociais são chatos. Não têm prazer em ouvir música, ficar com a família, só o trabalho interessa."
O Labor trabalha especificamente com os compulsivos. "Temos percebido que os jovens, em contato com a população adulta que supervaloriza a atividade profissional, acabam achando que o trabalho é só fonte de sacrifício. Eles não querem se escravizar como os adultos", afirma Yvette.
O problema é que o compulsivo só vai começar a pensar em mudar de atitude quando o estrago já está feito -e o estrago aparece com a crise familiar, perda de produtividade ou colapso na saúde.


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