São Paulo, terça-feira, 18 de novembro de 2008

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CECILIA GIANNETTI

De volta a Berlim


Por sermos ambas estrangeiras nesta cidade, tomei o costume de observar seu jeito de observar

DE PAQUETÁ A BERLIM numa semana. Sorte que os habitantes da ilha carioca e da cidade alemã têm em comum ao menos um hábito, o de circular bastante de bicicleta. Ou eu estaria outra vez perdida, sem saber direito onde vivo. É esse traço em comum que não me deixa perder a cabeça entre um lugar e outro.
Sete andares separam a janela de Widad da calçada, e, a esta hora da manhã, Albertstrasse está ainda praticamente deserta. Dificilmente alguém poderia avistar a menina se ela apenas reagisse ao impulso de pôr a cabeça para fora e matar a curiosidade que lhe despertara o rumor de vozes em uma língua incompreensível, à entrada de seu prédio no bairro de Kreuzberg, em Berlim. Mas ela não põe a cabeça para fora, simplesmente. Não satisfaz de vez a vontade.
Aos dez anos de idade Widad domina muito bem qualquer impulso, pois foi educada para isso. Assim domina o desejo de investigar a rua. Se correr ao quarto para buscar um de seus lenços, pode perder toda a cena de vista -quer assistir ao episódio inteiro. O episódio das pessoas que falam uma língua estranha.
Widad acompanha a mãe na barraca de doces fincada na feira turca aos sábados, e por isso sei seu nome, e por sermos ambas estrangeiras nesta cidade, tomei o costume de observar seu jeito de observar.
O grupo lá embaixo prepara-se para girar a chave na fechadura que abre o portão principal do prédio onde moram Widad, sua mãe e dois irmãos. Nunca vi, nem na feira, arredores ou janela do prédio, um pai de Widad.
O povo que chega talvez debata sobre qual chave do molho é a chave correta. Testam uma a uma; a rua agora tão silenciosa que Widad pode ouvir, sete andares acima, cada tentativa. A cortina servirá tão bem ao propósito de cobrir-lhe quanto o véu. Widad agarra um pedaço do tecido branco finíssimo que sua avó enviara de Esmina com a função muito específica de proteger a sala do apartamento da visão daqueles que, de dentro do S-Bahn que passa à altura de sua janela, tentam espiar sua casa. Widad envolve a cabeça morena com um pedaço de cortina, segurando duas pontas de pano abaixo do queixo como se tivesse dedos de pregador de roupas. Protegida assim, põe a cabeça para fora da janela sem quebrar qualquer lei e pode finalmente ver qual tipo de criatura fala (grita) de jeito tão estranho. Certamente não são alemães. Ciganos, talvez.
Não, não há nada de cigano nas roupas dos que chegam. Trazem malas e uma criança, de cabelos encaracolados cor de chocolate, assim como a pele. Não é o tom de pele de Istambul, de onde vem a família de Widad. Um estrangeiro que não seja turco poderia confundir tons de pele como aqueles, feito ocidentais que pensam ver um chinês quando na verdade se trata de um japonês e vice-versa. Widad calcula que o sol deve ter batido de outra forma naqueles nômades -que, embaixo, brigam com um molho de chaves e a fechadura- e incidiu sobre eles de maneira diferente da que coloriu seu corpo e os de seus pais.
A gente barulhenta que viverá em seu prédio não pertence originalmente a Berlim, está claro, pois quase ninguém em Kreuzberg pertence originalmente a Berlim. Kreuzberg, pequena Istambul alemã, tem mais parentes e amigos da cidade de Widad do que a própria cidade de Widad. Ela me contará detalhes no sábado, em inglês quebrado, quando conversarmos frente à barraca de doces. Comprarei baklava.


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