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São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

Sabe quem faz aniversário hoje?

Há exatos 32 anos, foi sancionada a lei 5.765, cujo texto começa assim: "Aprova alterações na ortografia da língua portuguesa e dá outras providências". É bom lembrar que a lei resulta de parecer conjunto da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa.
Pois bem, que alterações são essas? A principal delas é esta: "Fica abolido o acento circunflexo diferencial na letra "e" e na letra "o" da sílaba tônica das palavras homógrafas de outras em que são abertas a letra "e" e a letra "o", exceção feita da forma "pôde", que se acentuará por oposição a "pode'".
Entendeu tudo, caro leitor? Talvez seja bom "traduzir". São homógrafas as palavras que têm a mesma grafia, mas significados diferentes (o substantivo "colher" e o verbo "colher", por exemplo). Até 1971, o substantivo "gosto" (cujo primeiro "o" é fechado) e a forma verbal "gosto" (cujo primeiro "o" é aberto) eram diferenciados por um acento circunflexo, posto no substantivo. O que hoje se escreve "Não gosto do gosto dessa fruta" até 1971 se escrevia "Não gosto do gôsto dessa fruta".
No exemplo que acabamos de ver, o contexto diferencia claramente o verbo do substantivo. Em outros casos, no entanto, o contexto pode não bastar. Em títulos de obras, por exemplo, pode haver dificuldade para a leitura. É o que ocorre com o título de um filme iraniano que entre nós se chamou "Gosto de Cereja". Como ler? "Gósto" ou "gôsto"? Sem informações prévias, nada feito.
É por essas e outras que muita gente ainda lamenta a eliminação do circunflexo diferencial. Não faço parte desse time, sobretudo porque o emprego desse acento exigia verdadeiros malabarismos. Quem escrevesse os substantivos "professora" e "professoras", por exemplo, tinha de saber que o presente do indicativo do pouco usual verbo "professorar" apresenta as formas "(tu) professoras" e "ele/a professora", que se lêem com o "o" aberto ("tu professóras", ele/a professóra").
Moral da história: por causa da ultra-improvável confusão entre os substantivos e essas inusuais formas verbais, nossas queridas professoras eram obrigadas a carregar um circunflexo nas costas.
Embora eu não lamente a eliminação do circunflexo diferencial, penso que seria necessário aumentar um pouquinho a lista de exceções. Uma das palavras que deveriam receber o circunflexo diferencial é "forma" (sinônimo de "molde", "modelo"), que o "Aurélio" arbitrariamente registra com acento ("fôrma").
Oficialmente, não existe a grafia "fôrma". O texto da lei 5.765 é claro: "...exceção feita da forma "pôde", que se acentuará...". Na prática, porém, muita gente se rende à necessidade mais do que patente de diferenciar essa palavra da flexão verbal "forma" (do verbo "formar") e do substantivo "forma" (sinônimo de "formato", "feitio", "configuração"), que se lêem com o "o" aberto ("fórma").
No dicionário "Houaiss", a palavra "forma" é registrada de acordo com o sistema ortográfico vigente, ou seja, sem acento, em qualquer das suas acepções.
Por fim, é imperativo registrar que, embora já tenham transcorrido 32 anos da sanção da lei, ainda se vêem muitas palavras grafadas de acordo com o sistema anterior ("êle", "êste", "môlho", "sêco", "azêdo", "govêrno", "zêlo", "acôrdo" etc.), o que comprova a dificuldade de assimilação de reformas ortográficas. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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