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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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GILBERTO DIMENSTEIN

Lula está aprendendo (e bem) matemática

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, atacou, na semana passada, a ofensiva do PT para reduzir os gastos com as aposentadorias públicas. Involuntariamente (imagino, afinal um juiz deveria ser isento nas questões de irá julgar), ele virou o principal porta-voz de um dos segmentos do funcionalismo mais incomodados com as eventuais mudanças na Previdência: os servidores do Judiciário.
Um aposentado civil ganha em média, por mês, R$ 2.171 -a metade do que recebe um militar. Os servidores do Judiciário, no entanto, despedem-se do batente com R$ 7.308 no bolso todos os meses -nenhum segmento terá sofrido tantas perdas quanto eles, se forem aprovadas as mudanças defendidas pelo governo.
 
Transformada na principal discussão nacional, as aposentadorias públicas revelam que o PT, no geral, e Luiz Inácio Lula da Silva, tão resistentes até bem pouco tempo atrás a mudanças na Previdência, atrelados aos votos do funcionalismo, se viram forçados a aprender ou a mostrar que sabiam matemática.
Feitas as contas na ponta do lápis, o que se pergunta é o seguinte: até onde vai o limite dos governos federal, estaduais e municipais em investir mais recursos contra a pobreza, arcando com os crescentes gastos com os inativos? O déficit, nas aposentadorias públicas, para prefeitos, governadores e presidente, beira os R$ 70 bilhões anuais.
Comparemos. Os documentos do PT informam que, se houvesse todos os anos R$ 5 bilhões para investir contra a fome, não haveria um único brasileiro sem comer bem três vezes ao dia. Os gastos com os funcionários aposentados são 14 vezes esse sonho.
Esses mesmos R$ 5 bilhões poderiam dobrar a Bolsa-Escola, que ajuda 10 milhões de crianças com uma renda mensal, para cada uma, de R$ 15; daí ter sido apelidada pelo PT de "bolsa-esmola".
 
A primeira questão que surge, independentemente dos aspectos legais, é simples: faz sentido gastar tanto com os inativos e tão pouco com crianças ativas?
É justamente dessa pergunta que vem o aprendizado de matemática do PT.
Nesse aprendizado, o partido sofistica seu discurso e mostra que a exclusão não é resultado de uma briga de mocinhos (os trabalhadores e pobres) contra bandidos (os capitalistas globalizados, os banqueiros, patrões, governos dos países ricos), mas de um complexo sistema de apropriação de recursos.
 
O que está, de fato, em debate não são os aposentados, mas uma reinvenção dos gastos sociais no Brasil -e certamente está aqui a chance de Lula realizar uma revolução. Possivelmente, a esquerda tenha mais condições de dar essa guinada.
Falo em revolução e não exagero. Pela mesma porta das aposentadorias públicas, entrarão, na marra, muitas outras incongruências, no país na "bolsa-esmola". A matemática dos orçamentos prova que os recursos sociais não vão, em sua maior parte, para os mais pobres.
Pela mesma razão que se investe contra o funcionalismo, mais cedo ou mais tarde estarão na mira tabus, por exemplo, como a garantia de ensino gratuito para os mais ricos nas universidades federais e estaduais.
Dificilmente sairão incólumes os incentivos para a produção artística, muitas vezes projetos comerciais nos quais os pobres entram somente como porteiros ou faxineiros de teatros, cinemas e exposições. Ou os recursos públicos drenados para festas de chiques e famosos, como os camarotes do Carnaval em Salvador, como o de Flora Gil, mulher do ministro da Cultura, Gilberto Gil.
 
Além da falta de foco, há uma conta praticamente impossível de ser feita, onde reside, de longe, o maior desperdício: a falta de continuidade e de coordenação de programas governamentais, provocada pelas picuinhas dos políticos e pela ineficiência administrativa. Nunca ninguém mediu, de verdade, o impacto de programas de qualificação profissional, mas o pouco que se sabe recomenda auditorias. Assim como há indícios de que o computador nas escolas, pela falta de treinamento dos professores, é dinheiro que sai pelo ralo. Apenas quando um assunto mais polêmico ganha visibilidade é que vemos o tamanho da tragédia, como no caso da Febem, onde um interno custa até R$ 7.000 por mês.
A arrumação dos gastos, em discussão dentro do governo, baseia-se, paradoxalmente, numa visão empresarial dos gastos sociais, com o cálculo da relação custo/benefício, a fixação de metas claras e o estabelecimento de parceria nos níveis federal, estadual e municipal.
Se essa matemática vai sair do papel durante o governo Lula, ainda não sabemos. Até porque a campanha da fome, que deveria ser a referência de Lula, é, por enquanto, mais um contra-exemplo, repetindo vícios passados, em vez de oferecer um novo modelo de racionalidade administrativa.
 
P.S. - Nem os contribuintes sabem fazer as contas. Se soubessem, estariam ainda mais irritados com os desperdícios públicos. Pedi a técnicos da Receita Federal que calculassem quantos meses um indivíduo de classe média trabalha só para o governo, pagando impostos diretos e indiretos. Resposta: três meses e 17 dias. A seguir esse ritmo, haverá mais meses de trabalho apenas para o governo e, pior, somente para manter funcionários ativos e inativos.

E-mail - gdimen@uol.com.br



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