São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"De roupa sumida à mordida de cão"

O texto da semana passada (sobre crase) deu o que falar. Não foram poucos os leitores que escreveram para perguntar sobre alguns casos.
A leitora Patrícia C. Sbrogio quer saber se há acento no "a" de "da página 40 a 48". Cara Patrícia, lembre-se do que vimos na semana passada: se dizemos "da página X", temos o artigo "a" em "da" (= "de" + "a"), certo?
Pois bem, se pensarmos que a palavra "página" está subentendida antes de "48", notaremos que, na verdade, o que temos é "da página 40 à (página) 48". Nesse caso, temos a fusão (isto é, a crase) da preposição "a" (que fecha o nexo "de X a Y") com o "a" que se refere à palavra "página".
Outra vez, o artifício da substituição do feminino pelo masculino pode facilitar o entendimento. Se em vez de "página" tivéssemos "capítulo", teríamos "do capítulo 40 ao (capítulo) 48". Como bem disse Caetano Veloso numa das vezes em que me deu a honra de sua participação no programa "Nossa Língua Portuguesa", "à" é basicamente o feminino de "ao".
O leitor Paulo Theodoro escreveu para comentar este título, publicado pela Folha no último domingo: "STF julga de roupa sumida à mordida de cão". Diz o leitor: "Com base em seu último artigo, concluo que houve erro no uso da ardilosa senhora crase".
Sua conclusão é mais do que pertinente, caro Paulo. Como você mesmo diz em sua mensagem, o paralelismo impõe que não se use artigo antes de "mordida", já que não se usou artigo antes de "roupa". Em outras palavras, o que temos aí (de novo) é o nexo "de X a Y". O detalhe é que agora, se não há artigo antes de "roupa", não existe motivo para que haja artigo antes de "mordida". O "a" que antecede "mordida", portanto, é mera preposição.
A esta altura, talvez alguém diga que a presença (indevida) do acento grave no título jornalístico não alterou o preço do dólar ou o nível da interminável e incurável sem-vergonhice nacional. Não é esse o problema, caro leitor. O fato é que a compreensão desse mecanismo não deve ser analisada à luz de um caso isolado, mas à luz da necessidade de compreensão das estruturas da língua.
Parece conveniente aproveitar a ocasião para lembrar alguns casos em que é comum a presença (também indevida) do acento indicador de crase. Veja estes exemplos: "Ela está na fila desde às 19h"; "A reunião foi transferida para às 19h"; "O médico só atenderá após às 19h".
Não é difícil entender por que nos três casos é inadequado o uso do acento indicador de crase. Basta lembrar que "desde", "para" e "após" são preposições, portanto o "as" que vem depois delas é mero artigo. Uma simples troca de "19h" por um substantivo masculino basta para que se perceba a ausência da preposição "a": "Ela está na fila desde o amanhecer"; "A reunião foi transferida para o período noturno"; "O médico só atenderá após o almoço".
Se você pensou em frases como "O jogo começa às 19h" ou "Saí de casa às 9h", acalme-se. A história agora é outra. Temos aí as expressões adverbiais femininas "às 19h" e "às 9h", em que o acento indicador de crase é corretíssimo. Basta lembrar que se diz "O gol foi marcado aos sete minutos" para entender por que há acento em "O jogo começa às 19h".
Nas próximas duas semanas, darei férias aos leitores. A coluna volta em 11 de março. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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