|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"De roupa sumida à mordida de cão"
O texto da semana passada (sobre crase) deu o que
falar. Não foram poucos os leitores que escreveram para perguntar sobre alguns casos.
A leitora Patrícia C. Sbrogio
quer saber se há acento no "a" de
"da página 40 a 48". Cara Patrícia, lembre-se do que vimos na semana passada: se dizemos "da
página X", temos o artigo "a" em
"da" (= "de" + "a"), certo?
Pois bem, se pensarmos que a
palavra "página" está subentendida antes de "48", notaremos
que, na verdade, o que temos é
"da página 40 à (página) 48".
Nesse caso, temos a fusão (isto é, a
crase) da preposição "a" (que fecha o nexo "de X a Y") com o "a"
que se refere à palavra "página".
Outra vez, o artifício da substituição do feminino pelo masculino pode facilitar o entendimento.
Se em vez de "página" tivéssemos
"capítulo", teríamos "do capítulo
40 ao (capítulo) 48". Como bem
disse Caetano Veloso numa das
vezes em que me deu a honra de
sua participação no programa
"Nossa Língua Portuguesa", "à" é
basicamente o feminino de "ao".
O leitor Paulo Theodoro escreveu para comentar este título, publicado pela Folha no último domingo: "STF julga de roupa sumida à mordida de cão". Diz o leitor: "Com base em seu último artigo, concluo que houve erro no
uso da ardilosa senhora crase".
Sua conclusão é mais do que
pertinente, caro Paulo. Como você mesmo diz em sua mensagem,
o paralelismo impõe que não se
use artigo antes de "mordida", já
que não se usou artigo antes de
"roupa". Em outras palavras, o
que temos aí (de novo) é o nexo
"de X a Y". O detalhe é que agora,
se não há artigo antes de "roupa",
não existe motivo para que haja
artigo antes de "mordida". O "a"
que antecede "mordida", portanto, é mera preposição.
A esta altura, talvez alguém diga que a presença (indevida) do
acento grave no título jornalístico
não alterou o preço do dólar ou o
nível da interminável e incurável
sem-vergonhice nacional. Não é
esse o problema, caro leitor. O fato é que a compreensão desse mecanismo não deve ser analisada à
luz de um caso isolado, mas à luz
da necessidade de compreensão
das estruturas da língua.
Parece conveniente aproveitar
a ocasião para lembrar alguns casos em que é comum a presença
(também indevida) do acento indicador de crase. Veja estes exemplos: "Ela está na fila desde às
19h"; "A reunião foi transferida
para às 19h"; "O médico só atenderá após às 19h".
Não é difícil entender por que
nos três casos é inadequado o uso
do acento indicador de crase. Basta lembrar que "desde", "para" e
"após" são preposições, portanto
o "as" que vem depois delas é mero artigo. Uma simples troca de
"19h" por um substantivo masculino basta para que se perceba a
ausência da preposição "a": "Ela
está na fila desde o amanhecer";
"A reunião foi transferida para o
período noturno"; "O médico só
atenderá após o almoço".
Se você pensou em frases como
"O jogo começa às 19h" ou "Saí de
casa às 9h", acalme-se. A história
agora é outra. Temos aí as expressões adverbiais femininas "às
19h" e "às 9h", em que o acento
indicador de crase é corretíssimo.
Basta lembrar que se diz "O gol
foi marcado aos sete minutos"
para entender por que há acento
em "O jogo começa às 19h".
Nas próximas duas semanas,
darei férias aos leitores. A coluna
volta em 11 de março. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: CET monitora apresentação na Vila Maria Próximo Texto: Há 50 anos: General Zenóbio deve ser ministro da Guerra Índice
|