São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

"A descrimina(liza)ção da maconha"


Como verdadeiros "cartórios", os grandes dicionários registram o que tem ou teve uso na língua

HÁ ALGUNS DIAS, foi realizada no Rio de Janeiro uma reunião de uma comissão internacional de ex-presidentes, políticos, escritores etc. Nesse encontro, discutiu-se toda a teia que envolve o problema da droga. Depois da reunião, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falou em nome da comissão e defendeu a descrimina(liza)ção do uso da maconha.
É óbvio que não vou me pôr a discutir a posição da comissão a respeito da droga -meu assunto é outro, como sabe o leitor. O que me interessa aqui é discutir a dobradinha "descriminar"/"descriminalizar". Qual das duas é a tal, caro leitor?
O fato é que no dia seguinte alguns jornais empregaram em seus títulos a palavra "descriminação"; outros optaram por "descriminalização". E aí muita gente escreveu para perguntar como fica essa "duplicidade".
Alguns chatos de plantão dirão que leitor que pergunta isso é acomodado, preguiçoso, que basta ir a um dicionário etc. Não é bem assim. Boa parte desses leitores foi a um dicionário e só encontrou "descriminação" ("ato ou efeito de descriminar"). Outros (mais "abastados"), possuidores de dois ou mais dicionários, encontraram as duas formas.
E qual será o "perfil" de quem só encontrou "descriminação"? Na verdade, nesse caso o perfil é mais do dicionário do que do consulente. Explico: os dicionários antigos (o de Caldas Aulete, o velho Morais, o de Laudelino Freire, entre outros) só registravam a forma "descriminação" (assim como só registravam o verbo "descriminar" e o adjetivo "descriminável", ou seja, não registravam "descriminalizar" e "descriminalizável"). Até mesmo edições não muito antigas do "Aurélio" só registravam essas formas.
E por que as obras antigas só registravam as formas sem o bloco "liza"? Certamente porque as formas que predominavam no uso culto, formal eram aquelas. O que quero dizer é que, como "cartórios da língua", os dicionários registram o que tem ou teve uso (sim, porque um bom dicionário -dos grandes- não pode ocultar palavras que não têm mais a incidência que um dia tiveram).
Posto isso, convém lembrar que não se pode confundir "descriminar" ("isentar de culpa", "tornar evidente a ausência de crime ou contravenção", "absolver", "inocentar") com "discriminar" ("separar", "especificar", "distinguir", "estabelecer diferença"). Numa nota fiscal, por exemplo, costuma fazer-se a discriminação dos serviços/produtos, o que nada mais é que a especificação de cada serviço ou produto vendido.
A semelhança fonética entre "descriminar" e "discriminar" talvez seja a chave da explicação da busca (pelo falante) de uma forma alternativa para a primeira, daí o "surgimento" de "descriminalizar" e derivadas, já comuns não só no texto jornalístico, como também na linguagem jurídica e, por isso mesmo, registradas nos "cartórios da língua", os dicionários.
É interessante notar a postura dos nossos dois maiores dicionários em relação a esse caso. Em "descriminalizar", o "Aurélio" diz simplesmente isto: "V. descriminar". Isso significa que a obra dá "descriminar" como forma preferencial. O "Houaiss" faz exatamente o contrário, talvez porque se baseie na incidência hodierna de cada uma das formas.
Estarei em férias por duas semanas. A coluna volta em 12/3. É isso.

inculta@uol.com.br


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