São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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Donas da bola

Elas deixam trabalho, filho e marido para dar risada e desestressar no gramado

ROBERTO DE OLIVEIRA
DEBORAH GIANNINI

DA REVISTA DA FOLHA

Na corrida da cozinha para a sala, a professora Andrea Santana, 30, conduz a bola no pé. Para entrar no quarto, dá um certeiro chute de chapa (de lado) e dali sai driblando até o banheiro, onde mata o lance -sem gol, já que banheiros não costumam ter traves. Mas tudo bem, porque o objetivo é só praticar o exercício, proposto por seu técnico de futebol.
Até aí, ainda que o local de treino seja inusitado, Andrea poderia se chamar André sem estranhamento. Mas lá vem a jogada que entrega o jogo: "Deixo a bola na cozinha porque é o cômodo que mais freqüento na casa", explica. Bom, a não ser que seja um chef (ou um glutão), é difícil enxergar algum André dizendo o mesmo.
O mundinho das mulheres que praticam futebol por prazer é assim mesmo, cheio de adaptações e firulas -e não no sentido futebolístico do termo. Para elas, o que menos importa são a habilidade e o virtuosismo. Coisas que, por sinal, poucas têm.
"O mais legal é o astral do grupo. Mulher jogando futebol é muito engraçado, a gente dá muita risada. Uma vez, por exemplo, nossa atacante passou todo mundo e, na frente do gol, pisou na bola e caiu", conta Andrea, que treina toda terça à noite ao lado de uma dúzia de mulheres, incluindo advogadas, comerciantes e empresárias. Assim como muitos namorados/maridos, elas também aderiram ao futebol society uma vez por semana.
"É uma grande farra, não aquela aulinha fechada. A gente treina, alonga, se diverte. É um esporte completo", descreve a comerciante Ana Maria de Fiori Cassini, 38, que joga duas vezes por semana no clube Atlético Paulistano. Por completo, entenda-se tratar de corpo (o esporte deixa as pernas fortes e o bumbum durinho) e espírito. "Depois do futebol, fico aliviada. Como todo esporte que gasta muita energia, sinto bem-estar e cansaço", afirma a advogada Juliana Mendonça, 24, que faz parte da equipe de futebol do escritório Pinheiro Neto, um dos mais tradicionais de São Paulo.
No caso de Ana, quem deu o empurrão inicial foram os filhos Eduardo e Guilherme, de 11 e 7 anos, respectivamente, que também jogam no clube. "Sempre fui mais aos jogos deles do que meu marido e passei a adorar. Há quatro anos, no Dia das Mães, o treinador fez um jogo especial conosco, gostamos e pedimos que abrissem uma turma para a gente." Hoje são 14 alunas, com faixa etária acima dos 35 anos.
Segundo o técnico das "meninas" do Paulistano, Márcio Costa, o treinamento é uma aula com fundamentos de futebol. O "coletivo", como é chamado o jogo, é a parte de que elas mais gostam. "Depois da gente, tem treino masculino. Muitas vezes, eles chegam antes e ficam assistindo ao nosso. Eles nem nos conhecem, mas ficam dando palpite. Acham que estão ajudando, mas, na verdade, atrapalham", conta Andrea, que treina na quadra Bola 5, em Ubatuba, onde mora.
Não por acaso, os técnicos de times femininos são sempre homens. Na equipe da professora Andrea, ele é filho de uma das jogadoras. "Vale a pena "contratar" um técnico porque ele ensina os fundamentos e também atua como juiz", explica a professora.
Os maridos não costumam dar muita bola (sem trocadilho) para o fato de suas mulheres jogarem futebol. Aprovam, mas não se entusiasmam. Ciúmes? "De quê? Ela joga só com mulheres", responde o comerciante Carlos Eduardo Cassini, 42, marido de Ana Maria, considerada uma das mais bonitas do time do clube Paulistano. Ele diz que já assistiu aos treinos dela algumas vezes, quando, "por coincidência", estava correndo no clube no mesmo horário. "É um esporte para homem, mas acho bacana ela fazer o que gosta."
O economista Fábio Sampaio, casado há 18 anos com a empresária Isabel Cristina Sampaio, 39, também do Paulistano, acha "muito legal". O motivo? "A integração dela com o pai (ele mesmo) e o filho, pois ela passa a entender o futebol, as palavras, as regras. E não fala as bobagens que mulher fala. Também é bom porque ela vê o quanto cansa, as dificuldades que a gente enfrenta." Não é um fofo?

Na canela
Uma coisa, pelos menos, meninos e meninas têm em comum dentro do campo: elas também detestam ficar no gol. Mas por razões diferentes. "Tenho medo de levar bolada. Uma vez cheguei à faculdade com o olho direito roxo e todo mundo vinha me perguntar se eu tinha apanhado do meu marido. Era a marca de uma bolada na cara", conta Fernanda Lichtenberger, estudante e espécie de patrona do time feminino do clube Pinheiros.
E, se as mulheres torturam a redonda (é um dos gracejos machistas prediletos), também são muito maltratadas pelo esporte. É fácil identificar uma mulher que saiu de um treino de futebol. A roupa está ensopada, o rosto, vermelho, e a perna, roxa. "Agora a gente aprendeu a chutar só a bola, mas, no começo, todo mundo ficava com a perna muito roxa", lembra.
Sem contar o risco de transformar os pés em destroços. "Estava com esmalte vermelho e não notei que minha unha estava roxa, continuei jogando. Mais tarde, não conseguia pôr o pé no chão. Percebi que a unha tinha quebrado, e depois de um tempo ela caiu", conta a comerciante Ariane Froner, 31, que treinava aos sábados com as amigas. "O dedão do pé se acaba", concorda Ana Maria de Fiori. Nenhum problema para os homens, que não usam sandálias; já para elas...
Para piorar o inconveniente, apesar de viver no país do futebol, as brasileiras têm dificuldade para encontrar chuteiras de seu tamanho, já que as marcas costumam começar a numeração no 37/38. "Eu usava a chuteira do meu filho. Outro dia, minha irmã viu uma chuteira rosa da Nike e me disse: "Ana, é a sua cara". Agora só dá eu, sou vista de longe com minha chuteira cor-de-rosa", orgulha-se Ana Maria.
Já Paula Roque, 15 (de sombra, lápis nos olhos e batom clarinho), usava a chuteira de um amigo nos jogos da Liga Intercolegial, realizados no Pueri Domus no último fim de semana. Boicote, segundo ela. "Minha mãe não quis comprar uma para mim porque não gosta que eu jogue futebol. Prefere vôlei." A mãe, Marilza Campos, 42, tem outra versão ("Ainda não tive tempo de comprar"), mas confirma que não gosta muito da escolha da filha. "Eu a deixo jogar, mas explico que ainda há muita discriminação. As pessoas acham que mulher que joga é sapatão."
Em uma pesquisa realizada por Jorge Dorfman, professor de educação física na USP e no Mackenzie, mais de 50% das jogadoras entrevistadas apontaram o preconceito como a principal fonte de estresse -e não se referem apenas a piadinhas e comentários jocosos. Algumas chegaram a sofrer violência física.
A solução, acha Dorfman, passa pela co-educação no esporte: meninos e meninas aprendendo juntos, no mesmo espaço e com os mesmos direitos. "Ter meninas jogando de um lado e meninos de outro é algo que reproduz a mesma lógica que fazia, no passado, as escolas terem turmas separadas por sexo."
O argumento de que isso ocorre porque as meninas são mais frágeis também é incorreto, acha. "Esse discurso é uma forma de controle. Achar que "a mulher precisa ser protegida" é não vê-la como um ser autônomo, com controle do próprio corpo." Para o professor, a mistura poderia trazer benefícios também para os meninos. "Eles enfrentariam menos pressão para serem os "machões" e iriam se divertir muito mais."

Fanáticas
Pode até ser, mas bem lá no futuro. "Arrumar garotas para montar um time é sempre mais complicado, então eu convidava os meninos. Eles me olhavam como uma cara suspeita e esnobavam, "jogar com menina?". Aí eu entrava em campo e dava um show, só para largarem de ser bobos", lembra, rindo, Fernanda Rhormens Natel, 16, que se iniciou nos chutes muito cedo.
"Ela cambaleou muito ao dar os primeiros passinhos, mas, na hora de chutar uma bola, essa menina era toda segura de si, a maior firmeza", conta, no melhor estilo pai coruja, o administrador de empresas Roberto Rhormens Alves Natel, 43.
Aos cinco anos, Fernanda já acompanhava o pai, boleiro apaixonado, nas partidas do São Paulo. Naquela época, escolinha de futebol era um campo dominado pelos garotos, e os pais de Fernanda resolveram colocar a menina, como é de praxe, no balé. "Fiz balé por cinco anos, mas o futebol não saía da minha cabeça", conta. Nem dos pés. Durante as férias de verão, ela juntava os amiguinhos para bater bola na casa da família, no Guarujá. No inverno, saía à caça de meninas dispostas a jogar futebol no condomínio em Serra Negra (SP).
Aos 12 anos, Fernanda trocou as sapatilhas pelas chuteiras e, no ano passado, conseguiu duas vitórias: jogando pelo Pinheiros, ficou em terceiro lugar num campeonato com mais de 30 equipes em Minneapolis (EUA). No colégio Cidade de São Paulo, onde estuda, infernizou até que o professor de educação física resolveu criar um time de futebol feminino.
Bem mais madura, mas tão fanática quanto a xará, Fernanda Lichtenberger fez quase o mesmo no Pinheiros. Conseguiu reunir um time que treina todas as segundas e quartas.
"Só interrompi meus treinos quando quebrei a perna numa dividida. Saí do campo de maca e levei a maior bronca. Minha mãe tinha o maior orgulho de nenhum dos seus oito filhos ter quebrado nada no corpo. A primeira fui eu, e jogando bola. Pode?"
Muletas, andador e cinco meses depois, estava de novo em campo. "Quando voltei a jogar, eu acompanhava uma atacante de 13 anos, hoje ela tem 16. Corria tanto que até o técnico ficava passado", gaba-se. "Mas não tenho tanto fôlego assim para estar no ataque. Lá é outra logística", explica.
O marido, o médico Carlos Eduardo Lichtenberger, 51, dá todo apoio. "Acho que o futebol incentiva o espírito de coletividade. Assim como no esporte, na vida não se ganha um jogo com individualismo", diz. Mas pondera: "O que me preocupa é o atrito, ela se machucar novamente."
Carlos Eduardo não joga. "Não porque eu não goste de futebol, mas sim porque sou ruim de bola e ninguém me quer no time", brinca. Amanhã, quando Fernanda for bater uma bolinha, ele vai estar em casa, torcendo para não ser chamado pela emergência.


* Colaborou Amarílis Lage


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