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Donas da bola
Elas deixam trabalho, filho e marido para dar risada e desestressar no gramado
ROBERTO DE OLIVEIRA
DEBORAH GIANNINI
DA REVISTA DA FOLHA
Na corrida da cozinha para a sala, a professora Andrea Santana,
30, conduz a bola no pé. Para entrar no quarto, dá um certeiro
chute de chapa (de lado) e dali sai
driblando até o banheiro, onde
mata o lance -sem gol, já que banheiros não costumam ter traves.
Mas tudo bem, porque o objetivo
é só praticar o exercício, proposto
por seu técnico de futebol.
Até aí, ainda que o local de treino seja inusitado, Andrea poderia
se chamar André sem estranhamento. Mas lá vem a jogada que
entrega o jogo: "Deixo a bola na
cozinha porque é o cômodo que
mais freqüento na casa", explica.
Bom, a não ser que seja um chef
(ou um glutão), é difícil enxergar
algum André dizendo o mesmo.
O mundinho das mulheres que
praticam futebol por prazer é assim mesmo, cheio de adaptações
e firulas -e não no sentido futebolístico do termo. Para elas, o
que menos importa são a habilidade e o virtuosismo. Coisas que,
por sinal, poucas têm.
"O mais legal é o astral do grupo. Mulher jogando futebol é
muito engraçado, a gente dá muita risada. Uma vez, por exemplo,
nossa atacante passou todo mundo e, na frente do gol, pisou na bola e caiu", conta Andrea, que treina toda terça à noite ao lado de
uma dúzia de mulheres, incluindo advogadas, comerciantes e
empresárias. Assim como muitos
namorados/maridos, elas também aderiram ao futebol society
uma vez por semana.
"É uma grande farra, não aquela
aulinha fechada. A gente treina,
alonga, se diverte. É um esporte
completo", descreve a comerciante Ana Maria de Fiori Cassini, 38,
que joga duas vezes por semana
no clube Atlético Paulistano. Por
completo, entenda-se tratar de
corpo (o esporte deixa as pernas
fortes e o bumbum durinho) e espírito. "Depois do futebol, fico aliviada. Como todo esporte que
gasta muita energia, sinto bem-estar e cansaço", afirma a advogada Juliana Mendonça, 24, que faz
parte da equipe de futebol do escritório Pinheiro Neto, um dos
mais tradicionais de São Paulo.
No caso de Ana, quem deu o
empurrão inicial foram os filhos
Eduardo e Guilherme, de 11 e 7
anos, respectivamente, que também jogam no clube. "Sempre fui
mais aos jogos deles do que meu
marido e passei a adorar. Há quatro anos, no Dia das Mães, o treinador fez um jogo especial conosco, gostamos e pedimos que
abrissem uma turma para a gente." Hoje são 14 alunas, com faixa
etária acima dos 35 anos.
Segundo o técnico das "meninas" do Paulistano, Márcio Costa,
o treinamento é uma aula com
fundamentos de futebol. O "coletivo", como é chamado o jogo, é a
parte de que elas mais gostam.
"Depois da gente, tem treino masculino. Muitas vezes, eles chegam
antes e ficam assistindo ao nosso.
Eles nem nos conhecem, mas ficam dando palpite. Acham que
estão ajudando, mas, na verdade,
atrapalham", conta Andrea, que
treina na quadra Bola 5, em Ubatuba, onde mora.
Não por acaso, os técnicos de times femininos são sempre homens. Na equipe da professora
Andrea, ele é filho de uma das jogadoras. "Vale a pena "contratar"
um técnico porque ele ensina os
fundamentos e também atua como juiz", explica a professora.
Os maridos não costumam dar
muita bola (sem trocadilho) para
o fato de suas mulheres jogarem
futebol. Aprovam, mas não se entusiasmam. Ciúmes? "De quê? Ela
joga só com mulheres", responde
o comerciante Carlos Eduardo
Cassini, 42, marido de Ana Maria,
considerada uma das mais bonitas do time do clube Paulistano.
Ele diz que já assistiu aos treinos
dela algumas vezes, quando, "por
coincidência", estava correndo no
clube no mesmo horário. "É um
esporte para homem, mas acho
bacana ela fazer o que gosta."
O economista Fábio Sampaio,
casado há 18 anos com a empresária Isabel Cristina Sampaio, 39,
também do Paulistano, acha
"muito legal". O motivo? "A integração dela com o pai (ele mesmo) e o filho, pois ela passa a entender o futebol, as palavras, as regras. E não fala as bobagens que
mulher fala. Também é bom porque ela vê o quanto cansa, as dificuldades que a gente enfrenta."
Não é um fofo?
Na canela
Uma coisa, pelos menos, meninos e meninas têm em comum
dentro do campo: elas também
detestam ficar no gol. Mas por razões diferentes. "Tenho medo de
levar bolada. Uma vez cheguei à
faculdade com o olho direito roxo
e todo mundo vinha me perguntar se eu tinha apanhado do meu
marido. Era a marca de uma bolada na cara", conta Fernanda Lichtenberger, estudante e espécie de
patrona do time feminino do clube Pinheiros.
E, se as mulheres torturam a redonda (é um dos gracejos machistas prediletos), também são muito maltratadas pelo esporte. É fácil identificar uma mulher que
saiu de um treino de futebol. A
roupa está ensopada, o rosto, vermelho, e a perna, roxa. "Agora a
gente aprendeu a chutar só a bola,
mas, no começo, todo mundo ficava com a perna muito roxa",
lembra.
Sem contar o risco de transformar os pés em destroços. "Estava
com esmalte vermelho e não notei
que minha unha estava roxa, continuei jogando. Mais tarde, não
conseguia pôr o pé no chão. Percebi que a unha tinha quebrado, e
depois de um tempo ela caiu",
conta a comerciante Ariane Froner, 31, que treinava aos sábados
com as amigas. "O dedão do pé se
acaba", concorda Ana Maria de
Fiori. Nenhum problema para os
homens, que não usam sandálias;
já para elas...
Para piorar o inconveniente,
apesar de viver no país do futebol,
as brasileiras têm dificuldade para
encontrar chuteiras de seu tamanho, já que as marcas costumam
começar a numeração no 37/38.
"Eu usava a chuteira do meu filho.
Outro dia, minha irmã viu uma
chuteira rosa da Nike e me disse:
"Ana, é a sua cara". Agora só dá eu,
sou vista de longe com minha
chuteira cor-de-rosa", orgulha-se
Ana Maria.
Já Paula Roque, 15 (de sombra,
lápis nos olhos e batom clarinho),
usava a chuteira de um amigo nos
jogos da Liga Intercolegial, realizados no Pueri Domus no último
fim de semana. Boicote, segundo
ela. "Minha mãe não quis comprar uma para mim porque não
gosta que eu jogue futebol. Prefere vôlei." A mãe, Marilza Campos,
42, tem outra versão ("Ainda não
tive tempo de comprar"), mas
confirma que não gosta muito da
escolha da filha. "Eu a deixo jogar,
mas explico que ainda há muita
discriminação. As pessoas acham
que mulher que joga é sapatão."
Em uma pesquisa realizada por
Jorge Dorfman, professor de educação física na USP e no Mackenzie, mais de 50% das jogadoras
entrevistadas apontaram o preconceito como a principal fonte
de estresse -e não se referem
apenas a piadinhas e comentários
jocosos. Algumas chegaram a sofrer violência física.
A solução, acha Dorfman, passa
pela co-educação no esporte: meninos e meninas aprendendo juntos, no mesmo espaço e com os
mesmos direitos. "Ter meninas
jogando de um lado e meninos de
outro é algo que reproduz a mesma lógica que fazia, no passado,
as escolas terem turmas separadas por sexo."
O argumento de que isso ocorre
porque as meninas são mais frágeis também é incorreto, acha.
"Esse discurso é uma forma de
controle. Achar que "a mulher
precisa ser protegida" é não vê-la
como um ser autônomo, com
controle do próprio corpo." Para
o professor, a mistura poderia trazer benefícios também para os
meninos. "Eles enfrentariam menos pressão para serem os "machões" e iriam se divertir muito
mais."
Fanáticas
Pode até ser, mas bem lá no futuro. "Arrumar garotas para
montar um time é sempre mais
complicado, então eu convidava
os meninos. Eles me olhavam como uma cara suspeita e esnobavam, "jogar com menina?". Aí eu
entrava em campo e dava um
show, só para largarem de ser bobos", lembra, rindo, Fernanda
Rhormens Natel, 16, que se iniciou nos chutes muito cedo.
"Ela cambaleou muito ao dar os
primeiros passinhos, mas, na hora de chutar uma bola, essa menina era toda segura de si, a maior
firmeza", conta, no melhor estilo
pai coruja, o administrador de
empresas Roberto Rhormens Alves Natel, 43.
Aos cinco anos, Fernanda já
acompanhava o pai, boleiro apaixonado, nas partidas do São Paulo. Naquela época, escolinha de
futebol era um campo dominado
pelos garotos, e os pais de Fernanda resolveram colocar a menina,
como é de praxe, no balé. "Fiz balé
por cinco anos, mas o futebol não
saía da minha cabeça", conta.
Nem dos pés. Durante as férias de
verão, ela juntava os amiguinhos
para bater bola na casa da família,
no Guarujá. No inverno, saía à caça de meninas dispostas a jogar
futebol no condomínio em Serra
Negra (SP).
Aos 12 anos, Fernanda trocou as
sapatilhas pelas chuteiras e, no
ano passado, conseguiu duas vitórias: jogando pelo Pinheiros, ficou em terceiro lugar num campeonato com mais de 30 equipes
em Minneapolis (EUA). No colégio Cidade de São Paulo, onde estuda, infernizou até que o professor de educação física resolveu
criar um time de futebol
feminino.
Bem mais madura, mas tão fanática quanto a xará, Fernanda
Lichtenberger fez quase o mesmo
no Pinheiros. Conseguiu reunir
um time que treina todas as segundas e quartas.
"Só interrompi meus treinos
quando quebrei a perna numa dividida. Saí do campo de maca e levei a maior bronca. Minha mãe tinha o maior orgulho de nenhum
dos seus oito filhos ter quebrado
nada no corpo. A primeira fui eu,
e jogando bola. Pode?"
Muletas, andador e cinco meses
depois, estava de novo em campo.
"Quando voltei a jogar, eu acompanhava uma atacante de 13 anos,
hoje ela tem 16. Corria tanto que
até o técnico ficava passado", gaba-se. "Mas não tenho tanto fôlego assim para estar no ataque. Lá
é outra logística", explica.
O marido, o médico Carlos
Eduardo Lichtenberger, 51, dá todo apoio. "Acho que o futebol incentiva o espírito de coletividade.
Assim como no esporte, na vida
não se ganha um jogo com individualismo", diz. Mas pondera: "O
que me preocupa é o atrito, ela se
machucar novamente."
Carlos Eduardo não joga. "Não
porque eu não goste de futebol,
mas sim porque sou ruim de bola
e ninguém me quer no time",
brinca. Amanhã, quando Fernanda for bater uma bolinha, ele vai
estar em casa, torcendo para não
ser chamado pela emergência.
* Colaborou Amarílis Lage
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