São Paulo, quinta-feira, 19 de março de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

"Por isso se não nos mostrou"


É mais sensato dizer que essa construção morreu entre nós, mas é preciso compreender seu mecanismo para entendê-la

O TEXTO DA SEMANA PASSADA foi motivo de muitas mensagens dos leitores. Alguns deles me pediram que falasse um pouco mais de Fernando Pessoa e, especificamente, que explicasse algumas passagens linguísticas de sua obra.
O poema que citei ("O Tejo é mais Belo", de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa) está em "O Guardador de Rebanhos", em que também está o poema "Pensar em Deus", citado por alguns leitores.
Vamos a ele: "Pensar em Deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que o não conhecêssemos, / Por isso se não nos mostrou... / Sejamos simples e calmos, / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!...".
"Por que as construções "Quis que o não conhecêssemos" e "Por isso se nos não mostrou'?", perguntou mais de um leitor. "Que ordem é essa?"
Pois bem. Mais uma vez, cito o querido e saudoso professor João Alexandre Barbosa e seu texto "Literatura Nunca é Apenas Literatura": "...na leitura (...) de qualquer obra literária, de qualquer texto que tenha por base a intensificação de valores (...) existe sempre, como dizia o grande crítico canadense Northrop Frye, a necessidade de conhecimento de duas linguagens. Segundo ele, "na leitura de qualquer poema é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o poeta está escrevendo e a linguagem da própria poesia'".
Sobre a segunda linguagem (a "da própria poesia") falamos um pouco na semana passada. A primeira linguagem citada por Frye e por Barbosa ("a língua em que o poeta está escrevendo") é justamente o cerne da questão dos leitores sobre algumas passagens de Pessoa (Caeiro).
Como fica a escola em relação a isso? Como proceder nas aulas de língua? Sob o argumento de que a construção de Pessoa (Caeiro) está morta entre nós, alguns autodeclarados hiperultramegapós-modernos dizem que a escola deve pura e simplesmente ignorar esses fatos da língua. Será? Não seria mais sensato dizer aos alunos e interessados em geral que esse tipo de construção (que se encontra, por exemplo, em Machado de Assis -"Sei que me não ama") realmente morreu entre nós, mas que é preciso entender seu mecanismo para compreender o que se lê? Fico com a segunda opção.
Posto isso, vejamos o que ocorre nas duas passagens. Na primeira ("Quis que o não conhecêssemos"), vê-se algo muito comum em textos clássicos: a interposição do pronome oblíquo ("o", no caso) entre dois elementos tradicionalmente considerados "atrativos" (a conjunção "que" e a partícula negativa "não", no caso). A construção adotada no poema não é a única possível. Seria mais do que viável a ordem "normal", com o oblíquo depois do "não" ("Quis que não o conhecêssemos").
Na segunda passagem ("Por isso se nos não mostrou") ocorre algo que também é muito comum nos textos clássicos: a simples anteposição do oblíquo (dois, no caso: "se" e "nos") ao "não". Novamente, é preciso dizer que há outra ordem possível ("Por isso não se nos mostrou").
O leitor certamente já percebeu que essa passagem equivale a "Por isso (Deus) não se mostrou a nós".
Vencidas essas etapas, o melhor mesmo é saborear a leitura de Pessoa e de outros clássicos -e refletir sobre eles-, sem que a língua se transforme em empecilho. É isso.

inculta@uol.com.br


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