São Paulo, sexta-feira, 19 de março de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BARBARA GANCIA

Geraldão em praça pública!


A Promotoria deveria apurar em que circunstâncias o chá é tomado, quem sabe até cadastrando os usuários

INEVITÁVEL falar da morte do Glauco, mesmo que o que eu tenho a dizer possa dar a impressão de que esta coluna entravou em uma espécie de "Feitiço do Tempo" ("Groundhog Day"), aquele filme em que Bill Murray acordava sempre no mesmo dia.
Explico: há duas semanas, usei este espaço para dar meu pitaco sobre um comercial de cerveja. E, na sexta passada, falei sobre a bebida e o jogador Adriano. Pois lá vamos nós de novo bater em tecla parecida.
Fiz amizade com Glauco logo que entrei na Folha, em meados de 1984. Ele era uma das pessoas mais amenas de uma Redação repleta de jovens talentosos e arrogantes, em que raríssimas pessoas ofereciam um simples "bom dia" no elevador.
Eu achava o ambiente francamente hostil e, como nasci para dar risada e jogar conversa fora, fui me bandeando para o lado dos mais gregários. Tinha lá meus 24 ou 25 anos e, depois do calor do fechamento, costumava juntar-me a eles para tomar umas e outras.
O Glauco, malucão por excelência, vira e mexe ia junto. Fizemos muita farra. Lembro que uma vez quase o atropelei e que ele acabou estatelado em cima do capô do meu carro feito um Cristo Redentor na horizontal. Essas estrepolias me renderam o apelido de "Geraldona", honra duvidosa que me foi conferida pelo cartunista e que pegou entre meus pares.
Depois disso, o Glauco sumiu da Redação e começou a mandar suas tiras de fora da cidade. Foi na época em que o Geraldão aparecia sempre em uma fazenda correndo atrás de um porco e tentando usar o focinho do bicho como tomada para levar umas prises.
O personagem Geraldão tinha o campo como cenário porque seu autor estava internado em uma clínica tentando se livrar da dependência, não sei ao certo de que substância. Só sei que Glauco encontrou seu caminho para a sobriedade no Santo Daime e acabou fazendo disso sua razão de vida. E, por ter encontrado a paz de espírito, meu amigo já mereceria uma medalha de honra ao mérito.
Na verdade, o fato de um maluco beleza como ele ter conseguido sobreviver aos anos 70 e 80 deveria render-lhe uma estátua equestre na praça da Sé. Ouvi falar nisso nos últimos dias: alguém quer convencer Kassab a colocar uma estátua do Glauco numa praça pública. Já pensou, um Geraldão montado a cavalo tal e qual um d. Pedro?
Quão mais sofrido é o caminho para a maturidade, mais fibra parece que a pessoa adquire. Diz uma pesquisa dos Alcoólicos Anônimos realizada dentro da Marinha norte-americana que os alcoólatras sóbrios (tecnicamente, o alcoolismo e a dependência química são doenças incuráveis, progressivas e fatais, portanto, uma vez dependente, sempre dependente) conseguem obter o dobro de promoções do que o marinheiro comum.
É claro que seria interessante tirar algum aprendizado da desgraça que acometeu a Glauco e a seu filho Raoni. O Santo Daime é para os povos da floresta e não para ser tomado por urbanóides em busca de gratificação imediata. O Ministério Público deveria investigar em que circunstâncias o chá é tomado, quem sabe até cadastrando os usuários. Mas só vamos falar disso quando a dor passar um pouco, pode ser?

barbara@uol.com.br

www.barbaragancia.com.br

Twitter: @barbaragancia


Texto Anterior: Depoimento: Em Congonhas, paciência chega ao céu antes de mim
Próximo Texto: Qualidade das praias: Qualidade da água piora nas áreas de Santos e Praia Grande
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.