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EDUARDO FERREIRA-SANTOS
Conclusão surgiu após 2 anos de atendimento a vítimas no Hospital das Clínicas de São Paulo
Trauma de seqüestro supera o de sobrevivente de guerra
GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL
O primeiro impacto foi de frustração. Depois, veio o mea-culpa
por ter subestimado o trauma dos
pacientes e ter esperado demais
do tratamento oferecido.
Mas, apesar da decepção inicial,
os resultados obtidos trazem dados reveladores sobre o sofrimento e a recuperação de vítimas de
seqüestro, um dos crimes mais
cruéis da atualidade.
Foi assim que o psiquiatra
Eduardo Ferreira-Santos, 51, supervisor do serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do
HC (Hospital das Clínicas) de São
Paulo e coordenador de um serviço pioneiro que trata vítimas de
seqüestro tradicional e de seqüestro relâmpago reagiu aos resultados de sua própria criação.
O Gorip (Grupo Operativo de
Resgate da Integridade Física),
criado em 2002, tem cem pacientes cadastrados, mas as conclusões do psiquiatra foram tiradas a
partir de 51 casos atendidos -29
mulheres e 22 homens.
Para Ferreira-Santos, o trauma
de uma vítima de seqüestro pode
ser maior e de recuperação mais
difícil do que o sofrido por um
neurótico de guerra. O agravante,
no caso do seqüestrado, é a ameaça de ser vítima de novo, a qualquer momento. Surge o que o psiquiatra intitula "sobrevivente
com medo". "Para o seqüestrado,
a guerra não acaba", diz.
Folha - Como o senhor recebeu os
primeiros resultados do programa
depois de dois anos?
Eduardo Ferreira-Santos - O primeiro impacto foi de frustração.
A decepção diminuiu um pouco à
medida que eu pude ver que as
pessoas foram, com o tempo, assimilando melhor [o tratamento].
A gente foi aprendendo com o
tempo, vendo que estávamos mexendo com uma coisa muito mais
séria do que parecia.
Folha - Por que a frustração?
Ferreira-Santos - Na verdade, foi
a minha ansiedade de esperar que
os pacientes saíssem da terapia já
totalmente recuperados. Eu subestimei o tamanho do estrago.
Folha - Recuperado em 12 semanas, como prevê a terapia breve
que o senhor utiliza?
Ferreira-Santos - Em 12 semanas, seguindo modelos e experiências anteriores com outros
quadros, pensei que teria essa resposta.
Folha - Quais outros quadros?
Ferreira-Santos - Luto, perda de
parente, separação e até neuroses
de guerra.
Folha - Essa terapia foi empregada com neuróticos de guerra?
Ferreira- Santos - A terapia breve
começou a ser aplicada na Segunda Guerra Mundial, em soldados
ingleses que saíam do front. Pegavam esse pessoal apavorado, trabalhavam algumas coisas, e o soldado voltava para o front.
Folha - Os resultados com os neuróticos de guerra foram melhores
do que com os seqüestrados?
Ferreira-Santos - Pelos resultados publicados, sim. Houve respostas boas ao tratamento.
Folha - O estrago provocado na
vítima de seqüestro é maior?
Ferreira-Santos - É difícil comparar isso cientificamente. Qualitativamente, a vítima de seqüestro
vive o que o neurótico de guerra
vive, que é a ameaça permanente
de ser morto, uma sensação de estar morto, de amortecimento. E,
se eu quiser ser hiperbólico, eu diria que a situação do seqüestrado
é ainda pior do que a do neurótico
de guerra, porque o último sabe
que a guerra acabou. Para o seqüestrado, a guerra não acaba.
Folha - Mas o neurótico sabe realmente que a guerra acabou?
Ferreira-Santos - Se estourar um
pneu na rua, ele pode achar que
foi um tiro. Mas, no racional, ele
sabe que a guerra acabou. No caso
da vítima de seqüestro, ela saiu do
cativeiro ou não está mais com a
arma na cabeça, mas a cada esquina tem uma pessoa que pode seqüestrá-la novamente.
Folha - E foi essa diferença que
fez com que a terapia breve fosse
mais eficiente no tratamento de
neuróticos de guerra?
Ferreira-Santos - Acho que sim.
Folha - E o que o senhor esperava
das vítimas de seqüestro?
Ferreira-Santos - Eu esperava
que elas tivessem saído do papel
de vítimas, como elas chegaram. E
chegassem até aqui num novo papel, o de sobrevivente. Mas sobrou o tal do medo. Isso eu não
consegui tirar.
Folha - Medo do quê?
Ferreira-Santos - Medo de ser seqüestrado de novo. Eles dizem:
"Agora eu já sei como é e não quero passar por isso de novo".
Folha - E esse medo permanece
em todos?
Ferreira-Santos - Eu diria que,
senão em 100%, pelos menos em
90%. Em menor grau, alguns que
tinham estresse
psíquico, passaram a ter estresse
somático, ou seja,
dor de estômago e
outros sintomas.
Mas, em maior
grau, os que tinham estresse somático passaram
a ter psíquico. Ou
seja: deixaram de
ter dor de estômago, dor de cabeça,
insônia e passaram a ter medo.
Folha - Como isso
foi constatado?
Ferreira-Santos -
Com um questionário. A gente viu
que uma pessoa
deixou de ter um
nó no estômago
para ter medo.
Deixou de ter taquicardia para ter
medo.
Folha - Se não virou um sobrevivente, o que o paciente virou?
Ferreira-Santos - Um sobrevivente com medo. Ele se tornou
uma pessoa melhor, menos ansiosa, menos aflita. Mas o que ficou foi o grau de estresse. E esse
estresse se manifesta pelo medo.
Folha - O dano era maior do que
se pensava, mas a terapia também
não pode estar incorreta?
Ferreira-Santos - À primeira vista, o dano é maior do que se pensava. O que fizemos? Ampliamos
essa terapia para as
pessoas que estavam com o quadro
mais exacerbado.
Também não tínhamos idéia de que a
personalidade pré-mórbida -uma
coisa quase óbvia,
mas nós falhamos
nisso- pudesse favorecer um quadro
mais grave ou menos grave.
Folha - Como assim?
Ferreira-Santos - A
história de vida e o
jeito que essa pessoa
reage aos problemas. Esse é o primeiro ponto a ser
estudado agora. Se a
partir disso verificarmos que essa
história não tem nenhum significado, a
gente pode imaginar que o modelo psicoterapêutico não está funcionando. Mas insisto. Esse tipo
de trauma tem uma peculiaridade. Não acho que a terapia esteja
errada. Eu ainda acho que é a
questão da permanência da
ameaça.
Folha - Isso significa um paciente
mais forte.
Ferreira-Santos - Exatamente. A
expectativa era que todos saíssem
mais fortes, sabendo lidar melhor
com as encrencas da vida. Mas
saem dizendo isso: "Eu não quero
viver isso de novo, eu não quero
ter no meu carro um cara com um
revólver na minha boca".
Folha - Estudos falam que não
existe maior trauma do que a perda de um filho. O seqüestro pode se
aproximar disso?
Ferreira-Santos - Próximo disso,
se não superar. A perda do filho é
muito grave porque ele é uma
projeção de você mesmo. No seqüestro, a vivência da pessoa é de
uma perda de si mesmo. Ele tem
uma sensação de morte. As vítimas dizem: "Eu me senti morto".
Folha - O seqüestro relâmpago,
pelo fato de a vítima ficar menos
tempo no poder dos criminosos,
causa uma trauma menor?
Ferreira-Santos - Não. É tão
grande quanto.
Folha - Por quê?
Ferreira-Santos - O seqüestro relâmpago é muito intenso, concentrado em um curto espaço de
tempo. A vítima vive momentos
sob intenso bombardeio psicológico. "Vou te matar, vou te cortar
um pedaço, vou te estuprar."
Folha - E o que ocorre no seqüestro tradicional?
Ferreira-Santos - Existem momentos de tensão, mas intercalados com outros de relaxamento.
Folha - Para a polícia, o homem é
maioria entre as vítimas.
Ferreira-Santos - Mas na nossa
casuística, não. Nos seqüestros relâmpagos, o perfil é mulher, jovem, saindo ou chegando na ginástica. No crime com cativeiro, a
maioria é homem, com um grau
financeiro um pouco melhor.
Folha - Mulheres e homens reagem de modo diferente?
Ferreira-Santos - Pela minha experiência, não dá para dizer. O
medo é igual, a coragem é igual.
Depende da personalidade. Esse
tipo de agressividade é, inclusive,
até mais grave para o homem. O
homem se sente totalmente impotente. O que ele pode fazer com
um cara com um revólver na orelha dele? Com o revólver no ânus
dele? Isso acaba com a pessoa.
Folha - O senhor admite a possibilidade de essa vítima ter de carregar esse medo por muito tempo?
Ferreira-Santos - Um longo tempo. À medida que houver uma estabilização social [com diminuição desse tipo de crime], o medo
vai diminuindo. Mas, enquanto
isso não ocorrer, ela vai permanecer vítima de si mesma.
Folha - E como é esse medo?
Ferreira-Santos - É maior do que
o nosso. No farol, eu também fico
olhando. Mas eles ficam olhando
de uma forma meio paranóica.
Folha - A cura não pode ocorrer
sem o fator social?
Ferreira-Santos - Sem o fator social, eu não acredito. Porque a
ameaça continua. É enxugar a
pessoa que está na chuva.
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