São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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EDUARDO FERREIRA-SANTOS

Conclusão surgiu após 2 anos de atendimento a vítimas no Hospital das Clínicas de São Paulo

Trauma de seqüestro supera o de sobrevivente de guerra

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

O primeiro impacto foi de frustração. Depois, veio o mea-culpa por ter subestimado o trauma dos pacientes e ter esperado demais do tratamento oferecido.
Mas, apesar da decepção inicial, os resultados obtidos trazem dados reveladores sobre o sofrimento e a recuperação de vítimas de seqüestro, um dos crimes mais cruéis da atualidade.
Foi assim que o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, 51, supervisor do serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HC (Hospital das Clínicas) de São Paulo e coordenador de um serviço pioneiro que trata vítimas de seqüestro tradicional e de seqüestro relâmpago reagiu aos resultados de sua própria criação.
O Gorip (Grupo Operativo de Resgate da Integridade Física), criado em 2002, tem cem pacientes cadastrados, mas as conclusões do psiquiatra foram tiradas a partir de 51 casos atendidos -29 mulheres e 22 homens.
Para Ferreira-Santos, o trauma de uma vítima de seqüestro pode ser maior e de recuperação mais difícil do que o sofrido por um neurótico de guerra. O agravante, no caso do seqüestrado, é a ameaça de ser vítima de novo, a qualquer momento. Surge o que o psiquiatra intitula "sobrevivente com medo". "Para o seqüestrado, a guerra não acaba", diz.
 

Folha - Como o senhor recebeu os primeiros resultados do programa depois de dois anos?
Eduardo Ferreira-Santos -
O primeiro impacto foi de frustração. A decepção diminuiu um pouco à medida que eu pude ver que as pessoas foram, com o tempo, assimilando melhor [o tratamento]. A gente foi aprendendo com o tempo, vendo que estávamos mexendo com uma coisa muito mais séria do que parecia.

Folha - Por que a frustração?
Ferreira-Santos -
Na verdade, foi a minha ansiedade de esperar que os pacientes saíssem da terapia já totalmente recuperados. Eu subestimei o tamanho do estrago.

Folha - Recuperado em 12 semanas, como prevê a terapia breve que o senhor utiliza?
Ferreira-Santos -
Em 12 semanas, seguindo modelos e experiências anteriores com outros quadros, pensei que teria essa resposta.

Folha - Quais outros quadros?
Ferreira-Santos -
Luto, perda de parente, separação e até neuroses de guerra.

Folha - Essa terapia foi empregada com neuróticos de guerra?
Ferreira- Santos -
A terapia breve começou a ser aplicada na Segunda Guerra Mundial, em soldados ingleses que saíam do front. Pegavam esse pessoal apavorado, trabalhavam algumas coisas, e o soldado voltava para o front.

Folha - Os resultados com os neuróticos de guerra foram melhores do que com os seqüestrados?
Ferreira-Santos -
Pelos resultados publicados, sim. Houve respostas boas ao tratamento.

Folha - O estrago provocado na vítima de seqüestro é maior?
Ferreira-Santos -
É difícil comparar isso cientificamente. Qualitativamente, a vítima de seqüestro vive o que o neurótico de guerra vive, que é a ameaça permanente de ser morto, uma sensação de estar morto, de amortecimento. E, se eu quiser ser hiperbólico, eu diria que a situação do seqüestrado é ainda pior do que a do neurótico de guerra, porque o último sabe que a guerra acabou. Para o seqüestrado, a guerra não acaba.

Folha - Mas o neurótico sabe realmente que a guerra acabou?
Ferreira-Santos -
Se estourar um pneu na rua, ele pode achar que foi um tiro. Mas, no racional, ele sabe que a guerra acabou. No caso da vítima de seqüestro, ela saiu do cativeiro ou não está mais com a arma na cabeça, mas a cada esquina tem uma pessoa que pode seqüestrá-la novamente.

Folha - E foi essa diferença que fez com que a terapia breve fosse mais eficiente no tratamento de neuróticos de guerra?
Ferreira-Santos -
Acho que sim.

Folha - E o que o senhor esperava das vítimas de seqüestro?
Ferreira-Santos -
Eu esperava que elas tivessem saído do papel de vítimas, como elas chegaram. E chegassem até aqui num novo papel, o de sobrevivente. Mas sobrou o tal do medo. Isso eu não consegui tirar.

Folha - Medo do quê?
Ferreira-Santos -
Medo de ser seqüestrado de novo. Eles dizem: "Agora eu já sei como é e não quero passar por isso de novo".

Folha - E esse medo permanece em todos?
Ferreira-Santos -
Eu diria que, senão em 100%, pelos menos em 90%. Em menor grau, alguns que tinham estresse psíquico, passaram a ter estresse somático, ou seja, dor de estômago e outros sintomas. Mas, em maior grau, os que tinham estresse somático passaram a ter psíquico. Ou seja: deixaram de ter dor de estômago, dor de cabeça, insônia e passaram a ter medo.

Folha - Como isso foi constatado?
Ferreira-Santos -
Com um questionário. A gente viu que uma pessoa deixou de ter um nó no estômago para ter medo. Deixou de ter taquicardia para ter medo.

Folha - Se não virou um sobrevivente, o que o paciente virou?
Ferreira-Santos -
Um sobrevivente com medo. Ele se tornou uma pessoa melhor, menos ansiosa, menos aflita. Mas o que ficou foi o grau de estresse. E esse estresse se manifesta pelo medo.

Folha - O dano era maior do que se pensava, mas a terapia também não pode estar incorreta?
Ferreira-Santos -
À primeira vista, o dano é maior do que se pensava. O que fizemos? Ampliamos essa terapia para as pessoas que estavam com o quadro mais exacerbado. Também não tínhamos idéia de que a personalidade pré-mórbida -uma coisa quase óbvia, mas nós falhamos nisso- pudesse favorecer um quadro mais grave ou menos grave.

Folha - Como assim?
Ferreira-Santos -
A história de vida e o jeito que essa pessoa reage aos problemas. Esse é o primeiro ponto a ser estudado agora. Se a partir disso verificarmos que essa história não tem nenhum significado, a gente pode imaginar que o modelo psicoterapêutico não está funcionando. Mas insisto. Esse tipo de trauma tem uma peculiaridade. Não acho que a terapia esteja errada. Eu ainda acho que é a questão da permanência da ameaça.

Folha - Isso significa um paciente mais forte.
Ferreira-Santos -
Exatamente. A expectativa era que todos saíssem mais fortes, sabendo lidar melhor com as encrencas da vida. Mas saem dizendo isso: "Eu não quero viver isso de novo, eu não quero ter no meu carro um cara com um revólver na minha boca".

Folha - Estudos falam que não existe maior trauma do que a perda de um filho. O seqüestro pode se aproximar disso?
Ferreira-Santos -
Próximo disso, se não superar. A perda do filho é muito grave porque ele é uma projeção de você mesmo. No seqüestro, a vivência da pessoa é de uma perda de si mesmo. Ele tem uma sensação de morte. As vítimas dizem: "Eu me senti morto".

Folha - O seqüestro relâmpago, pelo fato de a vítima ficar menos tempo no poder dos criminosos, causa uma trauma menor?
Ferreira-Santos -
Não. É tão grande quanto.

Folha - Por quê?
Ferreira-Santos -
O seqüestro relâmpago é muito intenso, concentrado em um curto espaço de tempo. A vítima vive momentos sob intenso bombardeio psicológico. "Vou te matar, vou te cortar um pedaço, vou te estuprar."

Folha - E o que ocorre no seqüestro tradicional?
Ferreira-Santos -
Existem momentos de tensão, mas intercalados com outros de relaxamento.

Folha - Para a polícia, o homem é maioria entre as vítimas.
Ferreira-Santos -
Mas na nossa casuística, não. Nos seqüestros relâmpagos, o perfil é mulher, jovem, saindo ou chegando na ginástica. No crime com cativeiro, a maioria é homem, com um grau financeiro um pouco melhor.

Folha - Mulheres e homens reagem de modo diferente?
Ferreira-Santos -
Pela minha experiência, não dá para dizer. O medo é igual, a coragem é igual. Depende da personalidade. Esse tipo de agressividade é, inclusive, até mais grave para o homem. O homem se sente totalmente impotente. O que ele pode fazer com um cara com um revólver na orelha dele? Com o revólver no ânus dele? Isso acaba com a pessoa.

Folha - O senhor admite a possibilidade de essa vítima ter de carregar esse medo por muito tempo?
Ferreira-Santos -
Um longo tempo. À medida que houver uma estabilização social [com diminuição desse tipo de crime], o medo vai diminuindo. Mas, enquanto isso não ocorrer, ela vai permanecer vítima de si mesma.

Folha - E como é esse medo?
Ferreira-Santos -
É maior do que o nosso. No farol, eu também fico olhando. Mas eles ficam olhando de uma forma meio paranóica.

Folha - A cura não pode ocorrer sem o fator social?
Ferreira-Santos -
Sem o fator social, eu não acredito. Porque a ameaça continua. É enxugar a pessoa que está na chuva.


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