|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
O que ocorreu não foi acidente, foi crime
FRANCISCO DAUDT
COLUNISTA DA REVISTA DA FOLHA
Gostaria imensamente de ter
minha dor amenizada por uma
manchete que estampasse, em
letras garrafais, "GOVERNO
ASSASSINA MAIS DE 200
PESSOAS". O assassino não é só
aquele que enfia a faca, mas o
que, sabendo que o crime vai
ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser
chamado de acidente, vamos
dar o nome certo: crime.
Remeto-me ao livro de García Marquez, "Crônica de uma
morte anunciada". Todos sabiam e ninguém fez nada. E não
me refiro a você, leitor, que se
consome em sua impotência
diante deste e de tantos descalabros que vimos assistindo semanalmente. Ao ponto de a ministra se permitir ao deboche
extremo do "relaxa e goza'? Será
esta sua recomendação aos parentes das novas vítimas? Refiro-me às autoridades (in)competentes, inapetentes de trabalho gestor. Refiro-me ao presidente Lula, que, há quantos
meses, ó Senhor, disse em uma
de suas bazófias inconseqüentes que queria "data e hora para
o apagão aéreo acabar", como se
não dispusesse da devida autoridade para tal.
Sinto pena de não ter estado
na abertura do Pan, de não ter
engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente
não se importe tanto, afinal,
quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola,
não faz parte do seu particular
curral eleitoral cevado com o
dinheiro que ele arranca de
nós. Devem fazer parte das tais
"elites", que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o país crescer.
Qual de nós escapou do medo
de voar desde o desastre da Gol
HÁ NOVE MESES? Qual de
nós assistiu confortável o jogo
de empurra, "a culpa é dos controladores'; "não, é do ministério da defesa'; "a mídia também
exagera tudo'; "é do lobby das
empreiteiras que só querem fazer obras inúteis e superfaturadas nos aeroportos". Qual de
nós deixou de ficar perplexo
com a falta de ação efetiva para
que o problema se resolvesse?
Perdão, acho que a tal falta de
ação geral de governo é de tamanho tão extenso e dura tanto
tempo que muitos de nós a ela
nos acostumamos.
Sou psicanalista, e, por dever
de ofício, devo escutar o que
meus clientes queiram dizer.
Pois nunca pensei que fosse
pronunciar no consultório uma
frase que venho repetindo há
algum tempo, depois de que
mensalões, valeriodutos, Land-Rovers, dólares na cueca, dossiês fajutos, renans calheiros,
criminalidade, insegurança pública, impunidade, pizzas e tudo isso que o leitor já sabe se
despejam fétida, diária e gosmentamente sobre nossas cabeças. A tal frase: "Não quero falar desse assunto". Os pacientes
me respondem com alívio, "Ufa,
eu também não!'
É o desabafo da impotência
partilhada. "Welcome to Congo'? Talvez seja um insulto ao
Congo.
Pois agora quero falar deste
assunto. Deram-me a oportunidade de ser menos impotente. Sei que falo por uma enorme
quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa
máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a
raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca.
O governo sairá da inação, da
omissão criminosa? Alguém
será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Talvez condenem a mim,
por ter deixado o coração explodir. Pagarei o preço alegremente, lembrando Graciliano
Ramos, que, visitado no cárcere, travou com o amigo o seguinte diálogo:
- Puxa, Graça, você, aí dentro,
de novo?
- E você, o que faz aí fora?
Nestes tempos, lugar de homem honesto é na cadeia.
FRANCISCO DAUDT , 59, é psicanalista e colunista da Revista da Folha
Texto Anterior: Presidente não telefonou para Serra e Kassab Próximo Texto: Bombeiros usam mãos para resgatar mortos Índice
|