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Primeiro, a bonbonnière; depois, a pista
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
O
POETA Vinicius
de Moraes já dizia: "É mais pesado que o ar, tem motor a
explosão e foi inventado
por brasileiro. Não pode
dar certo". Durante 40
anos, essa foi apenas uma
"boutade" de Vinicius sobre o avião, meio de transporte do qual, mesmo
quando diplomata, guardava prudente distância.
Hoje, ela ganhou um
amargo sabor de realidade. Depois de habituar-se
a maltratar passageiros
antes, durante e depois de
vôos, aeroportos e companhias aéreas brasileiros
estão se dedicando a matá-los. Não admira que venham perdendo freguesia.
Pesquisa sem valor de
amostragem, ontem no
UOL, perguntou a cerca de
10 mil assinantes se, em
vista dos últimos acontecimentos, sentiam-se seguros para viajar de avião.
O não ganhou de goleada: 78% a 22%. Donde,
mesmo que os aeroportos
voltem a funcionar direito
e as empresas do setor troquem ganância por espírito público, poderemos ter
esvaziamento em massa
do transporte aéreo. Quebrou-se a confiança no veículo e em quem o opera.
Posso tirar por mim. Por
causa de livros que publico, sou freqüentemente
convidado a visitar cidades que adoro e onde tenho amigos. Nos últimos
tempos, já estava aprendendo a me adaptar às longas esperas nos aeroportos, ao crescente desconforto das poltronas, a indecentes aparelhinhos de TV
transmitindo comerciais
no vôo e à mesquinha dieta de barras de cereal -tudo pela literatura.
Mas, a partir de agora,
pensarei duas vezes se
quero arriscar o pescoço
num aparelho que pode
muito bem não pousar -e
só porque o aeroporto, vide Congonhas, começou
sua suntuosa reforma pela
bonbonnière, deixando
por último a pista.
Acontece que, se viajo
ou deixo de viajar para dar
uma palestra ou assinar livros, isso só altera meu cotidiano e o de algumas pessoas. Mas há uma quantidade fenomenal de brasileiros que precisa voar para lá e para cá o ano inteiro, para prestar serviços,
fechar negócios, cumprir
contratos -enfim, para fazer a economia funcionar.
Por acaso, são todos, ou
quase todos, seres humanos, sujeitos a medo. Suas
empresas terão o direito
de obrigá-los a esquecê-lo
e viajar -ou, a partir de
agora, deveriam pagar-lhes um adicional de insalubridade para cada tumba
voadora em que forem
obrigados a embarcar?
Acontece que quem viaja a negócios, bem ou mal,
terá de continuar viajando. Mas os que viajam a
prazer, em busca de sol,
praia e pernas de fora -direitos inalienáveis do ser
humano, mesmo que por
alguns dias do ano-, poderão optar por ficar em
casa em férias ou feriados.
Com isso, perdem cidades
como o Rio e as capitais do
Nordeste, que têm mais a
oferecer ao viajante do que
uma sala fechada no 25º
andar, feita só para gerar
dinheiro que tem cada vez
menos o que comprar.
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