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DANUZA LEÃO
Nunca mais
Apareceu uma lua cheia
que clareou a praia toda, e entramos no mar, rindo e brincando como crianças
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EU QUERIA acordar tendo perdido a memória e me esquecido de tudo; de tudo de ruim e
até das coisas boas. Mas às vezes não
dá e a gente se lembra.
Já faz tempo, mas eu me lembro
de uma praia em que não havia uma
só pousada, um só turista com celular que tira fotos; só os da terra, que
nasceram ali e dali nunca saíram.
Gente que nunca viu televisão, que
não sabia do que se passava no mundo. Gente que não aprendeu a ler
nem a escrever, mas que sabia se ia
chover pelo vento que soprava ou
pela ondulação das ondas. E para
quem isso não tinha nenhuma importância, pois que chovesse ou fizesse sol, não ia mudar suas vidas, já
que não acontecia mesmo nada em
dia nenhum.
Passeando pela areia havia sempre um vira-latas sem dono, fazendo
a única coisa que sabia: procurar restos de comida para matar a fome.
Ele nunca provou nenhuma ração e
era capaz de se regalar com restos de
peixe, sem engolir um só espinho. O
nome dele era Marujo; havia também umas galinhas ciscando, e se alguém chegasse perto, elas fugiam,
esbaforidas.
Os da terra nunca tomavam banho de mar; as mulheres usavam
vestidos de chita de florzinha cobrindo os joelhos, não mostravam as
pernas, seus cabelos eram longos,
com mechas douradas pelo sol, e o
penteado era uma trança nas costas;
o único produto de limpeza que usavam era sabão. Com este sabão lavavam as panelas, as roupas, o corpo e
os cabelos.
À tarde chegavam os mosquitos, e
se não havia repelente, o remédio
era nenhum. De vez em quando a
gente se abanava, e quando via algum mordendo a perna, dava um tapa; conseguindo acertar, a perna ficava com uma manchinha de sangue (do mosquito). Ninguém perguntava o que se ia comer porque
era quase sempre a mesma coisa:
peixe ensopado com farinha, às vezes um pirão, feijão mulatinho e arroz. Os mais entendidos disputavam
a cabeça dos peixes, que era saboreada como a melhor iguaria do mundo.
Nessa praia pouco se falava, até
porque não havia assunto. Lá ninguém se estressava, ninguém se
queixava da vida, sofria de ansiedade, fazia planos para o futuro. Era
nascer, viver e morrer, o que todos
achavam muito natural; e não é? Aos
domingos todos iam a uma pequena
igreja em cima de um morro, para
rezar e cantar.
Quando a canoa dos pescadores
ia chegando, todo mundo ia para a
praia, ver se a pesca havia sido boa; e
quando um barco estranho às vezes
se aproximava, todos os moradores
iam ver a chegada dos forasteiros,
como se fossem seres de outro
planeta.
No início, para chegar a essa praia,
só de canoa; mas um dia apareceu alguém da cidade, ficou amigo dos
pescadores, comprou a casa de um
deles e conseguiu que abrissem uma
estrada, para poder chegar por terra.
Nos primeiros tempos a estrada
era muito ruim; quando chovia, os
carros atolavam, e só com a ajuda
dos locais empurrando eles saíam da
lama. E os homens foram chegando,
ocupando a praia; tudo acabou
quando chegou o asfalto. Aí brotaram as biroscas vendendo cachaça,
começaram a acontecer brigas, e um
dia, numa delas, um homem morreu
de facada.
Essa praia existiu e lembro que foi
lá, talvez, que passei os dias mais felizes da minha vida. Ainda não havia
luz elétrica, só lampiões; uma noite
apareceu uma lua cheia que clareou
a praia toda, e entramos no mar, que
era morno e sem ondas, rindo e
brincando como crianças, achando
que a vida existia só pra isso, para a
gente ser feliz.
Muitos anos se passaram, mas um
dia você se pega pensando em como
foi bom e sofre porque sabe que em
nenhum lugar do mundo nada de
parecido vai acontecer, nunca mais.
danuza.leao@uol.com.br
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