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SILICONE COM VIDA
Em São Paulo, especialista modela próteses com textura, cor, poros, veias e até pêlos
Técnico esculpe membros perdidos
DA REPORTAGEM LOCAL
"Nossa, ficou bem legal", comemora a estudante Helen
Araújo de Sousa, 14, enquanto
olha no espelho as novas orelhas
de silicone. As "originais" foram
perdidas quando a adolescente
tinha seis anos, em um acidente
na fábrica de sorvetes da família,
em Sorocaba (SP). A máquina
levou também o couro cabeludo
da estudante, que hoje usa uma
peruca e um gorro de crochê.
Na última quinta-feira, Helen e
outras 30 pessoas passaram o dia
no ateliê do técnico de prótese
Marcelo Gonzalez, 43, mestre na
arte de esculpir membros humanos perdidos. Espremidas na pequena sala de espera de um sobrado na Vila Mariana (zona sul
de São Paulo), dividiam um sonho em comum: deixar de serem vistos como "diferentes".
Alguns conseguem até fazer
piada da tragédia pessoal. Helen,
por exemplo, contava que havia
perdido a prótese antiga de orelha em um show de rock. "Quando percebi que ela havia caído,
fiquei desesperada. Pedi ajuda
ao segurança, mas acho que ele
pensou que eu estava bêbada.
Consegui achá-la, mas ela estava
quebrada", conta.
Descendo alguns lances de escada, em uma sala entulhada de
próteses de todos os tipos, tamanhos e cores, está o taurino Gonzalez, que fala sem parar e brinca
com os clientes como se fossem
velhos conhecidos. O tema, ao
menos, não deixa de ser.
Filho de pai vítima de paralisia
infantil, Gonzalez já nasceu em
uma casa adaptada e sempre encarou a deficiência com naturalidade. Aos nove anos, seguindo
os passos do pai, um técnico ortopédico, iniciou-se na arte de
esculpir próteses. Fez faculdade
de engenharia e especialização
em prótese artística na Espanha.
Hoje, ele é referência na área.
Com um toque aqui e outro ali,
ele dá vida ao silicone, que ganha
cor, textura, poros, veias e pêlos
e se transforma em pés, pernas,
braços, mãos, dedos e orelhas,
como as de Helen.
Sai Helen e entra na sala a secretária Tatiane Guimarães Carvalho, 29, que perdeu parte da
mão soltando um rojão em uma
festa junina em Feira de Santana
(BA), em 2002. Desde então, usa
uma atadura porque tem vergonha de mostrar a mão mutilada.
Mês passado, encontrou o ateliê de Gonzalez na internet e não
pensou duas vezes em pegar um
ônibus e rodar quase 2.000 km
até São Paulo em busca da sua
mão perdida.
"Estou sonhando com ela. Não
vejo a hora de poder dar continuidade na minha vida", diz Tatiane, enquanto observa Gonzalez dando os últimos retoques na
cor da mão artificial, com a ajuda de um compressor.
Dois anos após o acidente, Tatiane ainda custa a acreditar na
mutilação. "Todos os dias acordo e penso que tive um pesadelo.
Olho para mão, vejo que é verdade, e me dá desespero", conta,
com os olhos marejados.
Gonzalez interrompe o clima
de tristeza e pede para que Tatiane experimente a mão. Diz que
está uma "beleza", mas que ainda é preciso "acertar" a cor e a
textura da peça. O toque final ficará a cargo da sua mulher, uma
pedagoga que se especializou em
confeccionar as unhas das próteses do marido.
(CC)
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