São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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SILICONE COM VIDA

Em São Paulo, especialista modela próteses com textura, cor, poros, veias e até pêlos

Técnico esculpe membros perdidos

DA REPORTAGEM LOCAL

"Nossa, ficou bem legal", comemora a estudante Helen Araújo de Sousa, 14, enquanto olha no espelho as novas orelhas de silicone. As "originais" foram perdidas quando a adolescente tinha seis anos, em um acidente na fábrica de sorvetes da família, em Sorocaba (SP). A máquina levou também o couro cabeludo da estudante, que hoje usa uma peruca e um gorro de crochê.
Na última quinta-feira, Helen e outras 30 pessoas passaram o dia no ateliê do técnico de prótese Marcelo Gonzalez, 43, mestre na arte de esculpir membros humanos perdidos. Espremidas na pequena sala de espera de um sobrado na Vila Mariana (zona sul de São Paulo), dividiam um sonho em comum: deixar de serem vistos como "diferentes".
Alguns conseguem até fazer piada da tragédia pessoal. Helen, por exemplo, contava que havia perdido a prótese antiga de orelha em um show de rock. "Quando percebi que ela havia caído, fiquei desesperada. Pedi ajuda ao segurança, mas acho que ele pensou que eu estava bêbada. Consegui achá-la, mas ela estava quebrada", conta.
Descendo alguns lances de escada, em uma sala entulhada de próteses de todos os tipos, tamanhos e cores, está o taurino Gonzalez, que fala sem parar e brinca com os clientes como se fossem velhos conhecidos. O tema, ao menos, não deixa de ser.
Filho de pai vítima de paralisia infantil, Gonzalez já nasceu em uma casa adaptada e sempre encarou a deficiência com naturalidade. Aos nove anos, seguindo os passos do pai, um técnico ortopédico, iniciou-se na arte de esculpir próteses. Fez faculdade de engenharia e especialização em prótese artística na Espanha. Hoje, ele é referência na área.
Com um toque aqui e outro ali, ele dá vida ao silicone, que ganha cor, textura, poros, veias e pêlos e se transforma em pés, pernas, braços, mãos, dedos e orelhas, como as de Helen.
Sai Helen e entra na sala a secretária Tatiane Guimarães Carvalho, 29, que perdeu parte da mão soltando um rojão em uma festa junina em Feira de Santana (BA), em 2002. Desde então, usa uma atadura porque tem vergonha de mostrar a mão mutilada.
Mês passado, encontrou o ateliê de Gonzalez na internet e não pensou duas vezes em pegar um ônibus e rodar quase 2.000 km até São Paulo em busca da sua mão perdida.
"Estou sonhando com ela. Não vejo a hora de poder dar continuidade na minha vida", diz Tatiane, enquanto observa Gonzalez dando os últimos retoques na cor da mão artificial, com a ajuda de um compressor.
Dois anos após o acidente, Tatiane ainda custa a acreditar na mutilação. "Todos os dias acordo e penso que tive um pesadelo. Olho para mão, vejo que é verdade, e me dá desespero", conta, com os olhos marejados.
Gonzalez interrompe o clima de tristeza e pede para que Tatiane experimente a mão. Diz que está uma "beleza", mas que ainda é preciso "acertar" a cor e a textura da peça. O toque final ficará a cargo da sua mulher, uma pedagoga que se especializou em confeccionar as unhas das próteses do marido. (CC)


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