São Paulo, terça-feira, 19 de setembro de 2006

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RUBEM ALVES

Os "ratos" e os "queijos"...

ANTIGAMENTE, LÁ em Minas, a política era coisa séria. Havia dois partidos com nome registrado, programa de governo e tudo mais. Mas não era isso que entusiasmava os eleitores. Eles não sabiam direito o nome do seu partido nem se interessavam pelo programa de governo. O que fazia o sangue ferver era o nome do bicho e correlatos por que seu partido era conhecido.
Em Lavras, os partidos eram os "Gaviões" e as "Rolinhas". Em Dores da Boa Esperança, onde nasci, eram os "Ratos" e os "Queijos". Os nomes diziam tudo. Ratos querem mesmo é comer o queijo. E o queijo quer mesmo é se colocar de isca na ratoeira para pegar o rato.
Vocês, paulistanos, vão se rir e dizer que isso é coisa de mineiro caipira. Que nada! Suspeito que os mineiros aprenderam lendo jornais dos Estados Unidos. Lá os partidos são bichos. O Partido Republicano é o partido do Elefante. E o Partido Democrático é o partido do Jegue. Pena que esse costume tenha caído em desuso porque ele revela a natureza animal das disputas políticas. Digo "animal" no sentido humano porque animal mesmo não faz política.
Como já disse, os eleitores nada sabiam dos programas de governo nem prestavam atenção nas promessas que eram feitas pelos chefões. Sua relação com seus partidos não era ideológica. Nada tinha a ver com a inteligência. Eles já sabiam que política não se faz com razão. Ganha não é quem tem razão. Ganha quem provoca mais paixão. O entusiasmo que tomava conta deles era igualzinho ao entusiasmo que toma conta do torcedor no campo.


Política não se faz com razão. Ganha não é quem tem razão. Ganha quem provoca mais paixão

Aos torcedores pouco importa se os jogadores batem ou não na mulher, se têm ou não têm religião, se têm ou não têm diploma, se roubam sabonetes ou não nas Lojas Americanas, se cheiram ou não cheiram cocaína, se promovem ou não promovem bacanais. O que provoca o entusiasmo não é o jogador. Jogadores são mercenários. Se o Real Madrid oferecer um contrato vantajoso, eles dizem adeus ao Brasil e se mandam para a Espanha. Tudo isso é esquecido quando o jogador entra em campo vestindo a camisa do seu time. Donde vem o entusiasmo? O entusiasmo vem do nome do time, vem da bandeira do time, vem da camisa do time, vem do barulhão da torcida. E quando o time ganha o campeonato é aquela euforia, buzinação, foguetório, provocações.
Naqueles tempos o entusiasmo não vinha nem da ideologia nem do caráter dos coronéis. O que fazia o sangue ferver era o símbolo: "Eu sou Rato", "Eu sou Queijo".
Corria o boato de que coronel Sigismundo, fazendeiro, chefe dos "Ratos", usava jagunços para matar seus desafetos. Não surtia efeito. Era mentira deslavada dos "Queijos". Corria o boato de que o doutor Alberto, médico rico, chefe dos "Queijos", praticava a agiotagem. Mentira deslavada dos "Ratos". Os chefões, na cabeça dos eleitores, eram semideuses, padrinhos, sempre inocentes. O que dava o entusiasmo era o campeonato. Quem ganharia? Os "Ratos" ou os "Queijos"? Quem ganhasse a eleição seria o campeão, dono do poder, nomeações dos afilhados, até a próxima...
Mais de oitenta anos se passaram. Os nomes são outros. Mas nada mudou. Política é a mesma paixão pelo futebol decidindo o destino do país. Os torcedores se preparam para a finalíssima entre os "Ratos" e os "Queijos". É como era na cidadezinha de Dores da Boa Esperança, onde nasci 73 anos atrás...


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