São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2010

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MINHA HISTÓRIA DANIELE TOLEDO DO PRADO, 25

Crime e reparação

Acharam uma mamadeira e uma seringa com um pó branco (...) Os policiais disseram ser cocaína (...) Na prisão, desfiguraram meu rosto (...) Só vi o túmulo da minha filha quando comprovaram que era remédio que ela tomava

RESUMO
A desempregada Daniele Toledo do Prado, 25, de Taubaté, foi presa em 2006 acusada de matar a filha ao fazê-la ingerir cocaína. Ficou 37 dias na cadeia, onde foi agredida. Perdeu visão e audição do lado direito. Hoje, move ação de indenização contra o Estado. Quer usar o dinheiro para montar uma ONG de ajuda a crianças com doenças raras, com tinha sua filha.

ROGÉRIO PAGNAN
DE SÃO PAULO

Quando o oxímetro passou a fazer píííííííííííííííí, sabia que minha filha tinha partido. Meu corpo todo gelou.
Vi a médica Érika Skamarakis caminhar em minha direção. Ela me pegou pelo braço, me arrastou para a sala de emergência e me empurrou sobre a maca onde minha filha estava deitadinha, só de calça, toda entubada. Morta.
Eu não tive reação. Ela, a médica Érika, começou a gritar. "Olha o que você fez com sua filha, assassina. Você a matou com overdose de cocaína". Eu olhava para todos, médicos e enfermeiros, mas não conseguia dizer nada. Estava em estado de choque.
Ali mesmo, na sala de emergência, um policial disse que eu estava presa.
Acharam na minha casa uma mamadeira e uma seringa. Dentro tinha pó branco, o mesmo recolhido da boca de minha filha por uma enfermeira do pronto-socorro.
Os policiais fizeram um teste nesse pó e decretaram ser cocaína. Para eles, o caso estava esclarecido: eu havia posto por maldade cocaína na mamadeira de minha filha e ela morreu de overdose.
O delegado Paulo Roberto Rodrigues chamou a imprensa. Passei a ser chamada de "monstro da mamadeira".
Apareceu tudo nas TVs da cadeia para onde fui levada, lá em Pindamonhangaba.
De um grupo de 21 presas, pelo menos 12 delas passaram a espancar o "monstro" e a "vagabunda" que matou "sua própria filha". Eu ainda não conseguia falar nada.
Puxaram meu cabelo, me jogaram no chão. Recebi chutes, muros e pauladas.
Quebraram minha clavícula, meu maxilar e desfiguraram todo meu rosto. Diziam que eu precisava sofrer muito antes de morrer.
Uma presa colocou uma caneta dentro do meu ouvido, com a ponta virada para o meu tímpano. Ela pretendia bater naquilo com um objeto.
Uma outra presa a convenceu a parar. Ela seguiu o conselho, mas antes quebrou a caneta dentro de mim. Os funcionários me recolheram no pátio na manhã seguinte.
Não sei quantos dias fiquei desacordada no hospital. Sei que fiquei presa por 37 dias.
Desses, 28 deles passei sem ver a luz do dia, comendo bolacha de água e sal, com suco de saquinho. Tinha medo de ser envenenada.

REMÉDIO
Perdi a audição e a visão do lado direito do rosto. Ainda sinto dores e precisarei passar por novas cirurgias porque os ossos foram calcificados em posição errada.
Só consegui ver o túmulo da minha filha quando os laudos comprovaram que o pó branco, aquele que a polícia afirmou ser cocaína, era resíduo dos remédios que ela estava tomando.
Minha vida foi destruída dessa forma porque 11 dias antes de minha filha morrer, fui estuprada dentro do hospital universitário da Unitau, a Universidade de Taubaté.
Minha filha estava internada para tratamento de saúde, rotina que vivíamos havia três meses. Ela tinha uma doença rara. No seu cérebro surgiam feridas e, em razão delas, ficava inconsciente.
Os medicamentos do misterioso pó branco eram justamente para tratar isso.
Fui estuprada por um aluno-médico. Ele usou um pano com produto químico que me deixou amolecida.
Enquanto estuprava meu corpo, também violentava minha dignidade. Dizia saber que eu precisava do hospital para tentar salvar minha filha e, caso eu o denunciasse, não teria mais ajuda.
A direção do hospital pediu para que retirasse a queixa, mas não aceitei. Ofereceram até um quarto particular para ficar com minha filha.
No dia 28 de outubro de 2006, na véspera de sua morte, minha filha teve uma nova crise. Fui para o mesmo hospital universitário, como havia sido orientada antes.
Mesmo com um encaminhamento assinado por três médicos, não me deixaram entrar. Disseram ter uma ordem para que não fosse atendida ali. Corri para outro pronto-socorro, onde minha filha morreu horas depois.

FUTURO
Minha filha se chamava Victória. Dei esse nome porque a gravidez foi complicada. Sobrevivemos por milagre. Tive pressão alta, crises convulsivas e eclampsia.
Ela nasceu de 7 meses. Nós ficamos internadas na UTI.
Ela morreu quando tinha 1 ano e 3 meses de idade. Ainda não sei a causa da morte.
Tento, na Justiça, que parte de todo esse meu sofrimento seja reparado. Movo uma ação de indenização contra o Estado e ainda aguardo o resultado desse pedido. Peço dinheiro.
Com ele, quero criar uma ONG para ajudar crianças com problemas de saúde -em especial aquelas com diagnóstico complicado.
Quero pagar pelos diagnósticos, oferecer assistente social e pagar pela internação. Isso custa caro.
Quero tentar dar às mães a ajuda que eu precisei, mas não tive. Que minha filha precisou, mas não teve.
Quero tentar ajudar um pouco das mães violentadas todos os dias nesse país por conta de sua classe social.


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