São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 2011

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MINHA HISTÓRIA / WALTER DE CAMARGO, 24

Minha mãe me devolveu

RESUMO Walter de Camargo, 24, foi adotado aos dois anos pelos donos do sítio onde sua mãe trabalhava. Os pais adotivos, de classe média alta, submetiam ele e três irmãos, também adotivos, a maus-tratos físicos e psicológicos, segundo o conselho tutelar na época. Aos 12 anos, foi rejeitado e passou a viver em albergue. Nos fins de semana, visitava a mãe adotiva. Ao 18, teve de sair do abrigo e passou um ano nas ruas. Atualmente, é bolsista da Fundação Criança, de São Bernardo.

Adriano Vizoni/Folhapress
Walter de Camargo, que foi adotado, depois devolvido e hoje é bolsista de um programa social da Fundação Criança

(...) Depoimento a

LUIZA BANDEIRA
DE SÃO PAULO

Minha mãe era caseira de um sítio em Itapecerica da Serra (SP). Antes de morrer, quando eu tinha dois anos, meu avô pediu para a dona do sítio nos adotar, porque minha mãe não tinha condições de cuidar dos filhos.
Tinha 22 irmãos, mas na época estávamos eu e mais três lá. Ela adotou os quatro.
A família tinha uma vida financeira boa. No começo, era tudo bom. Eles me davam presentes, me deram piano e videogame. Depois, começamos a ter problemas.
Ela [mãe adotiva] colocou meus irmãos para trabalhar no café dela quando eles tinham 13, 14 anos. Serviam mesas, mas os dois filhos biológicos dela ficavam na administração. Eu era o mais novo, só trabalhava às vezes.
Ela era muito autoritária. Nossa vida devia ser escola, casa e trabalho. Não podia mais nada. E minhas irmãs começaram a ir para baladas.
Eu também dava trabalho. Ficava na rua, mas ela não deixava. Queria sair com um amigo, e ela não aceitava. Eu voltava tarde, ela ficava brava e me batia. Ela e meu pai.
Ela apertava nossos dedos com alicate como castigo. Jogava cera de vela quente na gente, batia. Só nos quatro.
Um dia, ela colocou um cachorro com a gente e fechou a porta. Ela ficava berrando do lado de fora para o bicho avançar, e ele nos mordia.
Meus irmãos começaram a se revoltar e pediram para ir para um abrigo. Só eu fiquei.
Os problemas continuaram. Eu tinha ciúmes do cachorro. Ele era mais bem tratado do que eu. Um dia, com raiva, joguei ele na piscina. Ele se afogou.
Minha mãe não brigou, mas uns dias depois ela me levou para a Fundação Criança e me deixou no abrigo.
Eu tinha 12 anos. Me senti um pouco rejeitado, mas eu tinha um pouco de culpa.
Não sinto raiva, porque ela me ajudou. Mas senti mágoa. Ela me abandonou.
Para me adaptar no abrigo foi difícil. É um mundo diferente. Eu tinha vida boa, estudava em escola particular. Tinha três empregadas, piscina, geladeira com Danone, jogava bola, ia ao Playcenter.
Eu sempre fugia para visitar minha mãe no fim de semana. Ela tomava um susto e ligava para o abrigo, para me buscarem. Mas a gente conversava e via TV. Eu queria ficar, mas não podia.
No abrigo, ninguém quis me adotar. Criei a ilusão de que, aos 18 anos, voltaria para casa, mas não foi assim.
Fiquei dormindo em albergues, em instituições e de favor numa escola. Depois, acabei indo para a rua. Eu vivia pedindo dinheiro e comida.
Morei na rua quase um ano. Depois, um amigo me ajudou e entrei num programa que auxilia jovens. Aluguei minha casa e moro sozinho há cerca de um ano, mas a fundação ainda me ajuda.
Tinha parado, mas agora voltei a estudar. Quero terminar os estudos e, quem sabe, fazer faculdade de direito e pós em políticas públicas. Tenho vontade de ser como as pessoas que me ajudaram.
Se pudesse, voltava para a casa da minha mãe. Meus irmãos têm muita raiva, mas eu sinto carinho por ela.
Com a mãe verdadeira eu não tinha muito contato, e, depois de um tempo, não tive mais notícias dela. Quem eu considerava minha mãe mesmo era a adotiva.


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