São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

Um ponto-e-vírgula


Pode ser decisivo o papel de certos sinais -os acentos, a vírgula, o ponto-e-vírgula, o ponto de interrogação


OS MAIS JOVENS TALVEZ nunca tenham visto um telegrama, que, em tempos de e-mail, é quase peça de museu. "Telegrama" contém dois elementos gregos: "tele-" ("longe", "ao longe") e "-grama" ("escrita", "letra", "sinal gravado").
Por ser tarifado de acordo com o número de palavras (em que se incluem o nome e o endereço do destinatário), o telegrama quase sempre é (ou era) escrito com o mínimo de vocábulos. O resultado disso é a sumária supressão das preposições ("VIAJO SEU PAI CHEGO BAURU NOITE"). Parece coisa de gringo.
É bom lembrar também que nos telegramas não há acento, vírgula etc. É dessa história toda que vem a expressão "linguagem telegráfica", que consiste no uso de frases curtas, às vezes desconexas e superficiais.
Pois bem. Faz parte do folclore lingüístico um suposto telegrama enviado em tempos de guerra a um soldado da reserva. Era este o texto: "IRAS VOLTARAS NAO MORRERAS". O militar não se abalou, ou seja, fez a leitura que lhe convinha: "Irás; voltarás; não morrerás." (ou algo equivalente, como "Irás, voltarás, não morrerás."). Mal sabia ele que a mensagem original era esta: "Irás. Voltarás? Não! Morrerás!".
Como se vê, pode ser decisivo o papel de certos sinais -os acentos, a vírgula, o ponto-e-vírgula, o ponto de interrogação e o de exclamação.
Na última terça, Fernando H. Cardoso sentiu na pele o que pode fazer uma vírgula ou um ponto-e-vírgula (ou a falta de um deles). Em entrevista concedida à Rádio CBN, Cardoso disse algo que, a princípio, foi entendido assim: "Eu não sou contrário à privatização da Petrobrás". O bochicho foi imediato. Mais tarde, FHC publicou nota, na qual diz que "um cacoete de linguagem, de minha parte, e uma transcrição imprecisa da entrevista (...) deram origem a um mal-entendido". Adiante, Cardoso afirma que declarou textualmente: "Ninguém vai privatizar a Petrobrás. Eu disse isso quando foi feita a Lei (que flexibilizou o monopólio estatal no setor). Eu mandei uma carta ao Senado. Eu não (e aqui caberia a vírgula ou o ponto-e-vírgula que ficou faltando para dar sentido à frase), sou contrário à privatização da Petrobrás. Ela deve ser outra coisa: uma empresa pública. E não ser utilizada para fins políticos".
O fato é que tudo começou numa entrevista a uma emissora de rádio, ou seja, durante uma exposição oral. Será que o conhecido cacoete de FHC (o de abusar do "Assim não dá, assim não pode", que a turma do Casseta imita deliciosamente) o levou a uma velocidade tal na emissão do que vem depois do "não" que o fez trocar "Eu (,) não; sou contrário..." por "Eu não sou contrário..."? Ou será que quem "transcreveu" a fala de FHC fez como o soldado, isto é, "leu" o texto como lhe convinha?
Não resisto à tentação de dizer que, na nota, FHC grafa três vezes "Petrobrás" (em português, isto é, com acento), como se grafava antes de seu governo, em que um gênio qualquer do marketing "descobriu" que a estatal poderia ser prejudicada no exterior por causa do acento (que poderia ser confundido com um apóstrofo, blablablá, blablablá, blablablá). O mercado "fala" inglês, e em inglês não há acentos. E o acento foi suprimido, em nome de Deus, digo, do maldito mercado. Pelo jeito, FHC não gostou do que fizeram com a Petrobrás. Nem eu. É isso.

inculta@uol.com.br


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