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Por medo de febre amarela, macacos são mortos a tiros
Encontro de cadáver do animal mobiliza envio de material para análise, equipes de vacinação e de busca aos mosquitos
Em região com ocorrência da doença, fiscal ambiental tranqüiliza população
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
FERNANDO DONASCI
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO
O chacareiro Aderbal Ximenes, da cidade de Luziânia, em
Goiás, cresceu vendo a mãe todas as tardes ir ao fundo da propriedade da família levar restos
de alimentos para um tipo especial de pedintes. Em grupo
de 15 ou 20 indivíduos, o bando
composto por macacos-prego,
considerado o símio mais inteligente das Américas, anunciava sua chegada com gritos e estardalhaço. O líder então avançava solitariamente e punha as
mãos juntas, como se implorasse ajuda. A turma comia e ia
embora. Até hoje, o bando, que
já passou por várias gerações,
comparece à chácara de Ximenes. Mas agora a população humana do lugar resolveu começar a abater a tiros -por conta
própria- os "mendigos". Medo
da febre amarela.
"Ele vomitava sangue em jorros, tinha uma dor de cabeça
que o fazia gritar, delirava por
causa da febre e estava todo
amarelo, principalmente no
branco dos olhos." A descrição
quem faz é o vaqueiro Cícero
Geraldo da Silva, 26. Ele viu o
irmão, José, 33, também trabalhador em fazenda, sofrendo os
efeitos da infecção grave pelo
vírus da febre amarela, que o levaria à morte no dia 14. O
próprio Cícero também contraiu a doença. Ainda se recupera dela, pendurado a uma
garrafinha de soro no Hospital
Regional do Município de Gama, cidade-satélite de Brasília,
onde está internado.
"Zé não fumava nem bebia.
Era homem forte e resistente,
desses que nunca caem doentes. Só a febre mesmo para derrubar o Zé", diz Cícero.
Segundo o médico Joaquim
Carlos Barros, responsável pelo
setor de Vigilância à Saúde do
Distrito Federal, e chefe das
operações de inteligência e
combate à doença, a febre amarela em suas formas mais graves provoca distúrbio de coagulação sangüínea que gera um
quadro hemorrágico impressionante. O paciente verte sangue pelas gengivas, vomita sangue, excreta sangue.
É tamanha a perda sangüínea
que ocorre o chamado "choque
hipovolêmico", quando começa
a falência de múltiplos órgãos
devido à perfusão inadequada.
Dois dos órgãos mais afetados
são o fígado (daí a cor amarelada da pele) e os rins.
Epidemia animal
Os irmãos de Luziânia nunca
se vacinaram contra a febre,
apesar de morarem em área endêmica, com matas, macacos,
mosquitos e vírus -componentes necessários ao surgimento da doença em sua forma
silvestre. (Todos os casos registrados neste ano são da forma
silvestre. A forma urbana,
transmitida pelo Aedes aegypti,
não ocorre no Brasil desde
1942)
Em sua forma silvestre, a febre amarela tem como "depósito natural" o macaco. Quando
um macaco é picado por um
entre dois tipos de mosquito
(Haemagogus ou Sabethes), o
vírus passa aos mosquitos que,
picando outros macacos, provocam o surto da doença no
meio animal. Se há primatas
humanos no pedaço, os mosquitos não fazem distinção e
também os contaminam, caso
não tenha ocorrido a vacinação. Esse é o processo "normal", que existirá enquanto
houver matas, macacos e mosquitos no Brasil. Agora, porém,
ocorre um fenômeno especial,
ao qual os pesquisadores chamam de epizootia de febre
amarela entre os macacos, uma
epidemia que afeta os animais.
Não se sabe por que, mas a
cada sete anos acontece uma
epizootia de febre amarela e o
principal sinal dela é o aparecimento de macacos mortos sem
razão aparente.
Desde abril de 2007, foram
registradas epizootias em 136
municípios distribuídos em
nove Estados, Goiás, inclusive.
Coincidentemente, foi apenas
em Goiás que houve a confirmação laboratorial de que os
animais tinham morrido em
decorrência da febre amarela.
Segundo o Ministério da
Saúde, a epizootia é um "evento sentinela" -avisa que o perigo está rondando e desencadeia uma série de ações de prevenção, controle e isolamento
da doença.
Eletrocutado
Na região do Distrito Federal
(que não é área endêmica para
febre amarela, mas está cercada pela endemia), o encontro
de qualquer cadáver de macaco
é um acontecimento. Mobiliza
equipes para resgate do corpo,
retirada de material e envio para análise laboratorial. Mobiliza equipes de vacinação que
vão até a região onde o corpo foi
encontrado, para imunizar a
população da área. Mobiliza
equipes de busca e apreensão
de mosquitos, para verificar se
estão contaminados. Isso antes
mesmo do aparecimento de casos em humanos.
Na maior parte das vezes, o
"evento sentinela", no fim, é
apenas um alarme falso. Em
um caso, a causa mortis do macaco foi afogamento, outro foi
envenenado por agrotóxico,
outro morreu por choque na
rede elétrica, outro levou mordidas de cachorro, outro foi por
infecção generalizada. Nada a
ver com a febre amarela.
A preocupação com a doença
(que tem índices de letalidade
em humanos que chegam à casa dos 46 óbitos para cada 100
infecções) é tanta que estão
sendo providenciadas contraprovas dos exames no Instituto
Evandro Chagas, de Belém
(PA), referência mundial em
ciências biológicas, ambiente e
medicina tropical.
Dilúvio
A região em que Cícero e seu
irmão morto trabalhavam e viviam sofreu um grande abalo
ambiental quando da construção e inauguração da Usina Hidrelétrica Corumbá 4 (há dois
anos) -há quem, como o presidente da Sociedade Goiana de
Infectologia, Marcelo Dahera,
responsabilize a mudança no
ecossistema pela irrupção dos
casos de febre amarela.
A represa submergiu áreas de
sete municípios e juntou em
uma só massa de água as contribuições de quatro rios (Alagado, Lagoinha, Corumbá e Santo
Antônio).
Em 2005, 25 barcos foram
mobilizados e trabalharam durante cerca de um ano (período
de enchimento do lago) para fazer o resgate de animais que,
com o dilúvio, acabavam ilhados em copas de árvores. Eram
seriemas, tatus, macacos do tipo guariba, prego, mão-de-ouro e miquinhos, cobras cascavéis, caninanas, jibóias, além de
jaguatiricas e antas, que, resgatados da represa, acabavam
sendo soltos em outras áreas,
em um enorme manejo de população silvestre.
Eduardo Pena e Vera Lucia
Dantas Ribeiro, fazendeiros,
lembram-se da invasão de formigas e aranhas de todas as espécies que, fugindo das águas
naquele tempo, tomaram as
margens do lago.
O casal foi obrigado a abandonar a pecuária que existia em
sua propriedade ("As terras
boas ficaram sob as águas") e
hoje investe em turismo de
pesca esportiva. A fazenda Canastra virou Parque Canastra,
pendurado no lago de 173 quilômetros quadrados, profundidade de até 80 metros, e águas
sempre mornas, ricas em tucunarés amarelos e azuis, tilápias,
dourados, traíras, papa-terra e
piaus. (Um segundo com um
anzol mergulhado na água e a
reportagem da Folha pescou
uma tilápia)
Mas o movimento de aluguel
de barcos no parque despencou
desde a morte do vaqueiro José. "Perdemos, nos dois últimos finais de semana, pelo menos 60% do faturamento", afirma Pena.
Na beira da represa, os pescadores locais dizem não ter
mais medo da febre. A equipe
de vacinação já passou por lá e
revacinou todos os que tinham
mais de dez anos sem imunização. Ficou o medo da cascavel.
O bicho, que antes da inundação só andava na terra, com a
represa, aprendeu a nadar.
"Está dando um trabalhão
danado lidar com esses casos
da febre amarela", lamenta o
fiscal ambiental de Luziânia
Valdomiro Barbosa de Oliveira.
Quando não está embrenhado
na mata, ele anda de um lado
para outro na cidade. Tem de
tranqüilizar a população sobre
os riscos da febre amarela. Aos
mais exaltados na revolta contra os macacos, ele lembra que
basta a vacinação para estar livre da doença. "Não precisa
matar."
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