São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Por medo de febre amarela, macacos são mortos a tiros

Encontro de cadáver do animal mobiliza envio de material para análise, equipes de vacinação e de busca aos mosquitos

Em região com ocorrência da doença, fiscal ambiental tranqüiliza população

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

FERNANDO DONASCI
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO

O chacareiro Aderbal Ximenes, da cidade de Luziânia, em Goiás, cresceu vendo a mãe todas as tardes ir ao fundo da propriedade da família levar restos de alimentos para um tipo especial de pedintes. Em grupo de 15 ou 20 indivíduos, o bando composto por macacos-prego, considerado o símio mais inteligente das Américas, anunciava sua chegada com gritos e estardalhaço. O líder então avançava solitariamente e punha as mãos juntas, como se implorasse ajuda. A turma comia e ia embora. Até hoje, o bando, que já passou por várias gerações, comparece à chácara de Ximenes. Mas agora a população humana do lugar resolveu começar a abater a tiros -por conta própria- os "mendigos". Medo da febre amarela.
"Ele vomitava sangue em jorros, tinha uma dor de cabeça que o fazia gritar, delirava por causa da febre e estava todo amarelo, principalmente no branco dos olhos." A descrição quem faz é o vaqueiro Cícero Geraldo da Silva, 26. Ele viu o irmão, José, 33, também trabalhador em fazenda, sofrendo os efeitos da infecção grave pelo vírus da febre amarela, que o levaria à morte no dia 14. O próprio Cícero também contraiu a doença. Ainda se recupera dela, pendurado a uma garrafinha de soro no Hospital Regional do Município de Gama, cidade-satélite de Brasília, onde está internado.
"Zé não fumava nem bebia. Era homem forte e resistente, desses que nunca caem doentes. Só a febre mesmo para derrubar o Zé", diz Cícero.
Segundo o médico Joaquim Carlos Barros, responsável pelo setor de Vigilância à Saúde do Distrito Federal, e chefe das operações de inteligência e combate à doença, a febre amarela em suas formas mais graves provoca distúrbio de coagulação sangüínea que gera um quadro hemorrágico impressionante. O paciente verte sangue pelas gengivas, vomita sangue, excreta sangue.
É tamanha a perda sangüínea que ocorre o chamado "choque hipovolêmico", quando começa a falência de múltiplos órgãos devido à perfusão inadequada. Dois dos órgãos mais afetados são o fígado (daí a cor amarelada da pele) e os rins.

Epidemia animal
Os irmãos de Luziânia nunca se vacinaram contra a febre, apesar de morarem em área endêmica, com matas, macacos, mosquitos e vírus -componentes necessários ao surgimento da doença em sua forma silvestre. (Todos os casos registrados neste ano são da forma silvestre. A forma urbana, transmitida pelo Aedes aegypti, não ocorre no Brasil desde 1942)
Em sua forma silvestre, a febre amarela tem como "depósito natural" o macaco. Quando um macaco é picado por um entre dois tipos de mosquito (Haemagogus ou Sabethes), o vírus passa aos mosquitos que, picando outros macacos, provocam o surto da doença no meio animal. Se há primatas humanos no pedaço, os mosquitos não fazem distinção e também os contaminam, caso não tenha ocorrido a vacinação. Esse é o processo "normal", que existirá enquanto houver matas, macacos e mosquitos no Brasil. Agora, porém, ocorre um fenômeno especial, ao qual os pesquisadores chamam de epizootia de febre amarela entre os macacos, uma epidemia que afeta os animais.
Não se sabe por que, mas a cada sete anos acontece uma epizootia de febre amarela e o principal sinal dela é o aparecimento de macacos mortos sem razão aparente.
Desde abril de 2007, foram registradas epizootias em 136 municípios distribuídos em nove Estados, Goiás, inclusive. Coincidentemente, foi apenas em Goiás que houve a confirmação laboratorial de que os animais tinham morrido em decorrência da febre amarela.
Segundo o Ministério da Saúde, a epizootia é um "evento sentinela" -avisa que o perigo está rondando e desencadeia uma série de ações de prevenção, controle e isolamento da doença.

Eletrocutado
Na região do Distrito Federal (que não é área endêmica para febre amarela, mas está cercada pela endemia), o encontro de qualquer cadáver de macaco é um acontecimento. Mobiliza equipes para resgate do corpo, retirada de material e envio para análise laboratorial. Mobiliza equipes de vacinação que vão até a região onde o corpo foi encontrado, para imunizar a população da área. Mobiliza equipes de busca e apreensão de mosquitos, para verificar se estão contaminados. Isso antes mesmo do aparecimento de casos em humanos.
Na maior parte das vezes, o "evento sentinela", no fim, é apenas um alarme falso. Em um caso, a causa mortis do macaco foi afogamento, outro foi envenenado por agrotóxico, outro morreu por choque na rede elétrica, outro levou mordidas de cachorro, outro foi por infecção generalizada. Nada a ver com a febre amarela.
A preocupação com a doença (que tem índices de letalidade em humanos que chegam à casa dos 46 óbitos para cada 100 infecções) é tanta que estão sendo providenciadas contraprovas dos exames no Instituto Evandro Chagas, de Belém (PA), referência mundial em ciências biológicas, ambiente e medicina tropical.

Dilúvio
A região em que Cícero e seu irmão morto trabalhavam e viviam sofreu um grande abalo ambiental quando da construção e inauguração da Usina Hidrelétrica Corumbá 4 (há dois anos) -há quem, como o presidente da Sociedade Goiana de Infectologia, Marcelo Dahera, responsabilize a mudança no ecossistema pela irrupção dos casos de febre amarela.
A represa submergiu áreas de sete municípios e juntou em uma só massa de água as contribuições de quatro rios (Alagado, Lagoinha, Corumbá e Santo Antônio).
Em 2005, 25 barcos foram mobilizados e trabalharam durante cerca de um ano (período de enchimento do lago) para fazer o resgate de animais que, com o dilúvio, acabavam ilhados em copas de árvores. Eram seriemas, tatus, macacos do tipo guariba, prego, mão-de-ouro e miquinhos, cobras cascavéis, caninanas, jibóias, além de jaguatiricas e antas, que, resgatados da represa, acabavam sendo soltos em outras áreas, em um enorme manejo de população silvestre.
Eduardo Pena e Vera Lucia Dantas Ribeiro, fazendeiros, lembram-se da invasão de formigas e aranhas de todas as espécies que, fugindo das águas naquele tempo, tomaram as margens do lago.
O casal foi obrigado a abandonar a pecuária que existia em sua propriedade ("As terras boas ficaram sob as águas") e hoje investe em turismo de pesca esportiva. A fazenda Canastra virou Parque Canastra, pendurado no lago de 173 quilômetros quadrados, profundidade de até 80 metros, e águas sempre mornas, ricas em tucunarés amarelos e azuis, tilápias, dourados, traíras, papa-terra e piaus. (Um segundo com um anzol mergulhado na água e a reportagem da Folha pescou uma tilápia)
Mas o movimento de aluguel de barcos no parque despencou desde a morte do vaqueiro José. "Perdemos, nos dois últimos finais de semana, pelo menos 60% do faturamento", afirma Pena.
Na beira da represa, os pescadores locais dizem não ter mais medo da febre. A equipe de vacinação já passou por lá e revacinou todos os que tinham mais de dez anos sem imunização. Ficou o medo da cascavel. O bicho, que antes da inundação só andava na terra, com a represa, aprendeu a nadar.
"Está dando um trabalhão danado lidar com esses casos da febre amarela", lamenta o fiscal ambiental de Luziânia Valdomiro Barbosa de Oliveira. Quando não está embrenhado na mata, ele anda de um lado para outro na cidade. Tem de tranqüilizar a população sobre os riscos da febre amarela. Aos mais exaltados na revolta contra os macacos, ele lembra que basta a vacinação para estar livre da doença. "Não precisa matar."


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