São Paulo, segunda-feira, 20 de abril de 2009

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MOACYR SCLIAR

A vez dos excluídos


Ali ele ficaria com a família Obama, na qualidade de primeiro-cão. Algo com que nunca se atrevera a sonhar

 

Cão de Obama foi rejeitado antes de ir para a Casa Branca. Se alguém duvidava que Obama faria o governo dos excluídos nos Estados Unidos, eis a prova. A família presidencial norte-americana recebeu na Casa Branca o tão aguardado mascote: Bo, um cão-d'água português de seis meses, com pelagem preta e branca e muita energia. Justamente por conta dessa "eletricidade" canina, o animal havia sido devolvido por sua primeira família à criadora Martha Stern, do Texas.
Folha Online

DESDE O COMEÇO ficou claro que Bo não era bem-vindo ali. Em primeiro lugar, era agitado demais para o gosto dos donos da casa, um casal de meia-idade que se orgulhava do seu passado aristocrático e que o tratava com certa arrogância. A agitação de Bo era em grande parte resultado disso, da ansiedade que sentia diante daquelas pessoas tão altivas: corria de um lado para outro, sem saber o que fazer para agradar-lhes.
Mas pior ainda que o casal era George Fielding 3º, o outro cão da casa. Um galgo de fina estirpe, cujas origens remontavam a cães criados em palácios da Europa. George Fielding 3º não escondeu o seu desagrado ao saber da vinda de Bo. Era com o maior desprezo que olhava o recém-chegado. Que era, afinal, um humilde cão-d'água, de origem portuguesa. Origem portuguesa, onde já se viu! Quem eram os portugueses, afinal? Certo, podia-se falar de um Vasco da Gama ou de um Camões, mas nos Estados Unidos, os portugueses eram imigrantes pobres, humildes, que tinham vindo para a costa leste como tripulantes de baleeiros. Bo deveria, portanto, recolher-se à sua insignificância.
Nos domínios de George Fielding 3º -e esses domínios incluíam praticamente toda a vasta e luxuosa mansão- não poderia jamais penetrar. Sobrava-lhe um pequeno território. E ele que corresse à vontade ali; que se espojasse no chão que, enfim, fizesse o que tinha vontade na inútil tentativa de chamar a atenção dos donos.
A agitação de Bo acabou tendo resultados desastrosos. Numa de suas corridas ele derrubou um raro e precioso vaso chinês da dinastia Ming, orgulho dos donos da casa. A senhora, em particular, aborreceu-se muito. Exigiu que o marido devolvesse "aquele bicho estúpido", segundo sua expressão, à criadora. E assim foi feito. De repente, Bo estava de volta a seu lugar de origem, um canil do Texas, no meio de cães agitados e barulhentos como ele fora. Agora, porém, mostrava-se triste, deprimido. Era um excluído, e provavelmente terminaria a sua vida assim.
Um dia, porém, vieram buscá-lo: Bo teria um novo lar. Ficou surpreso: quem o quereria? Algum operário, decerto, talvez um desempregado em busca de companhia. Mas não, levaram-no para um lugar famoso, em Washington: a Casa Branca. Ali ele ficaria com a família Obama, na qualidade de primeiro-cão.
Algo com que nunca se atrevera a sonhar. Naquele momento ele pensou em George Fielding 3º. Que inveja deveria estar sentindo o galgo, que inveja! Naquele momento certamente estaria bolando um complô para derrubar o presidente. Ou, quem sabe, rememorando alguma piada de português.
A Bo isso não importava. Um dia os excluídos também têm sua vez, e a vez dele chegara.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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