São Paulo, terça-feira, 20 de abril de 2010

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Receita de família

Após a morte da matriarca Anita Albanese, a centenária padaria São Domingos, no Bixiga, tenta manter a tradição

ESTÊVÃO BERTONI
DA REPORTAGEM LOCAL

De todas as cartas já enviadas ao número 330 da rua São Domingos, no Bixiga, centro de São Paulo, a mais desagradável delas informava aos Albanese que ali onde está a padaria da família iria passar uma avenida.
Naquela década de 60, a ideia era desapropriar o prédio e abrir espaço para a Radial Leste, via de acesso ao Minhocão.
O que a prefeitura não sabia é que quem apitava ali era uma mulher, Anita Albanese, ícone do bairro. Querida por políticos e personalidades por seu carisma, ela impediu que a padaria São Domingos fosse derrubada.
A Radial foi sutilmente desviada e, hoje, passa quase atropelando o prédio centenário. Casas ao lado, algumas também da família, foram demolidas.
Pela segunda vez na história, o negócio fundado em 1913 pelo imigrante italiano Domenico Albanese resistia. A primeira foi durante a Revolução de 1924, quando um grupo faminto tentou saquear o local.
Hoje, para manter uma história de 97 anos, o desafio da família é outro: preservar o legado de dona Anita que, aos 91, sofrendo de Alzheimer e afastada há algum tempo do negócio, morreu no mês passado, em 19 de março. Era a última ainda viva da terceira geração de donos.

Exemplo
O modo como conduzia a empresa ficou de exemplo para seus três filhos, Felipe, 67, Eliana, 55, e Silvio, 50, hoje no comando da padaria italiana mais antiga do bairro -a quinta geração ainda não entrou em ação, mas por enquanto isso não preocupa tanto a família.
São cinco os netos de Anita, com idades entre 16 e 38 anos. Dois deles são estudantes de engenharia, outros já se formaram em direito e em administração. Nenhum trabalha lá.
Já Anita dedicou a vida ao negócio desde os 16 anos, quando se casou com Domingos Albanese, neto do fundador. Simpática, fazia os clientes, mesmo sem dinheiro, levarem os pães.
Atrás do balcão, sentava e ficava batendo papo com os fregueses. Criou laços tão fortes com a clientela que os filhos e os netos dos antigos frequentadores continuam indo ao local.
Como um senhor que, doente e no fim da vida, ao ser questionado pelo filho sobre qual lugar gostaria de visitar mais uma vez, desejou voltar à padaria. Ele costumava ir lá quando criança, acompanhando o avô.
Até Adoniran Barbosa, nada bobo, ao perceber o talento de Anita para preparar fusilli com calabresa e bife à milanesa, vivia almoçando com a família, que morava em cima da padaria.
Há também uma senhora, moradora distante do Bixiga, que bate ponto no local. Pode estar caindo o maior pé-d'água que ela pega um ônibus e vai comprar pão. Após passar o dia conversando com os funcionários, é levada de volta para casa pelo carro da São Domingos.
Atualmente com 30 funcionários, o estabelecimento continua fornecendo os pães para as cantinas mais conhecidas da cidade, como a Jardim de Napoli, em Higienópolis, que, desde os anos 40, quando foi fundada, compra o produto feito no mesmo forno francês (de pedra) construído em 1913 -há outro que ajuda na produção.
A unidade do pão italiano é vendida por R$ 4.
A mercadoria chega até Terezina, Belém, Belo Horizonte, Salvador, Goiânia. E há também clientes que aproveitam a viagem a SP para conhecer a padaria. Um recifense, que vinha fazer tratamento médico no Estado, recentemente fez isso: foi até o Bixiga visitá-los.
Silvio, um dos filhos, diz que ainda segue o antigo conselho dado pelo avô: "Não vá atrás de coisa barata. Use material bom que o cliente não te deixa jamais". Ele mantém a linha da mãe, buscando ser o mais agradável possível no atendimento, que não para um segundo.
Para ele, Anita foi uma figura-chave para o sucesso do negócio. "Não há ninguém no bairro da época da minha mãe que fale mal dela", afirma.
E conta ainda que, quando um cliente recebeu de um médico a indicação de que deveria parar de comer massa e pão para o bem de sua saúde, rapidamente pensou na São Domingos e respondeu que preferia morrer a acatar a orientação.


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