|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Receita de família
Após a morte da matriarca Anita Albanese, a centenária padaria São Domingos, no Bixiga, tenta manter a tradição
ESTÊVÃO BERTONI
DA REPORTAGEM LOCAL
De todas as cartas já enviadas
ao número 330 da rua São Domingos, no Bixiga, centro de
São Paulo, a mais desagradável
delas informava aos Albanese
que ali onde está a padaria da
família iria passar uma avenida.
Naquela década de 60, a ideia
era desapropriar o prédio e
abrir espaço para a Radial Leste, via de acesso ao Minhocão.
O que a prefeitura não sabia é
que quem apitava ali era uma
mulher, Anita Albanese, ícone
do bairro. Querida por políticos
e personalidades por seu carisma, ela impediu que a padaria
São Domingos fosse derrubada.
A Radial foi sutilmente desviada e, hoje, passa quase atropelando o prédio centenário.
Casas ao lado, algumas também
da família, foram demolidas.
Pela segunda vez na história,
o negócio fundado em 1913 pelo
imigrante italiano Domenico
Albanese resistia. A primeira
foi durante a Revolução de
1924, quando um grupo faminto tentou saquear o local.
Hoje, para manter uma história de 97 anos, o desafio da família é outro: preservar o legado de dona Anita que, aos 91,
sofrendo de Alzheimer e afastada há algum tempo do negócio,
morreu no mês passado, em 19
de março. Era a última ainda viva da terceira geração de donos.
Exemplo
O modo como conduzia a
empresa ficou de exemplo para
seus três filhos, Felipe, 67, Eliana, 55, e Silvio, 50, hoje no comando da padaria italiana mais
antiga do bairro -a quinta geração ainda não entrou em
ação, mas por enquanto isso
não preocupa tanto a família.
São cinco os netos de Anita,
com idades entre 16 e 38 anos.
Dois deles são estudantes de
engenharia, outros já se formaram em direito e em administração. Nenhum trabalha lá.
Já Anita dedicou a vida ao negócio desde os 16 anos, quando
se casou com Domingos Albanese, neto do fundador. Simpática, fazia os clientes, mesmo
sem dinheiro, levarem os pães.
Atrás do balcão, sentava e ficava batendo papo com os fregueses. Criou laços tão fortes
com a clientela que os filhos e
os netos dos antigos frequentadores continuam indo ao local.
Como um senhor que, doente e no fim da vida, ao ser questionado pelo filho sobre qual
lugar gostaria de visitar mais
uma vez, desejou voltar à padaria. Ele costumava ir lá quando
criança, acompanhando o avô.
Até Adoniran Barbosa, nada
bobo, ao perceber o talento de
Anita para preparar fusilli com
calabresa e bife à milanesa, vivia
almoçando com a família, que
morava em cima da padaria.
Há também uma senhora,
moradora distante do Bixiga,
que bate ponto no local. Pode
estar caindo o maior pé-d'água
que ela pega um ônibus e vai
comprar pão. Após passar o dia
conversando com os funcionários, é levada de volta para casa
pelo carro da São Domingos.
Atualmente com 30 funcionários, o estabelecimento continua fornecendo os pães para
as cantinas mais conhecidas da
cidade, como a Jardim de Napoli, em Higienópolis, que, desde os anos 40, quando foi fundada, compra o produto feito
no mesmo forno francês (de
pedra) construído em 1913 -há
outro que ajuda na produção.
A unidade do pão italiano é
vendida por R$ 4.
A mercadoria chega até Terezina, Belém, Belo Horizonte,
Salvador, Goiânia. E há também clientes que aproveitam a
viagem a SP para conhecer a
padaria. Um recifense, que vinha fazer tratamento médico
no Estado, recentemente fez isso: foi até o Bixiga visitá-los.
Silvio, um dos filhos, diz que
ainda segue o antigo conselho
dado pelo avô: "Não vá atrás de
coisa barata. Use material bom
que o cliente não te deixa jamais". Ele mantém a linha da
mãe, buscando ser o mais agradável possível no atendimento,
que não para um segundo.
Para ele, Anita foi uma figura-chave para o sucesso do negócio. "Não há ninguém no
bairro da época da minha mãe
que fale mal dela", afirma.
E conta ainda que, quando
um cliente recebeu de um médico a indicação de que deveria
parar de comer massa e pão para o bem de sua saúde, rapidamente pensou na São Domingos e respondeu que preferia
morrer a acatar a orientação.
Texto Anterior: Prefeito é o 3º a tentar negociar com a União Próximo Texto: Frase Índice
|