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ARTIGO
O terrorismo urbano: violência e desordem social
EDUARDO BITTAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
A ordem social precisa ser restabelecida.
Mas não se pode deixar de pensar nas causas que fomentam a
violência, a criminalidade e o banditismo generalizados, que chegam ao nível de acossar o próprio
poder do Estado. E a pergunta
não pode ser outra: estamos num
Estado de Direito?
Apesar de um discurso racional
falar em ordem e legalidade, o
subterrâneo social funciona de
outra forma.
Desde a Revolução Francesa se
propagou liberdade, igualdade e
fraternidade ("liberté", "égalité",
"fraternité") e se realizou outra
coisa, a saber, a consagração dos
valores liberais e burgueses, das
práticas políticas e econômicas
incapazes de justiça e de uma
ciência que, sem ética, atua ao lado do poder.
No lugar de paz e ordem, colhe-se guerra e desordem.
O que se percebe, numa leitura
retrospectiva, é que tecnologia e
violência se uniram, numa associação altamente perigosa e economicamente compensadora,
durante o século 20. E a experiência da Segunda Guerra Mundial
demonstrou aos vitoriosos o
quanto a indústria da violência
pode ser lucrativa.
Essa associação teve por conseqüência a potencialização ainda
maior do papel da violência como
meio de coação social, pois o poder (que se instrumentaliza por
meio da violência) e a violência
(que se reforça pela tecnologia)
amplificam ainda mais o vigor
humano, que, quase sempre, está
voltado para a dominação e para
usos políticos bem determinados,
conforme leciona Hannah
Arendt.
Assim, forma-se um relacionamento amigável entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento tecnológico, entre pesquisa científica e corrida pelo domínio de potenciais destrutivos, algo
muito amplamente explorado
durante o século 20.
Afinal, o capitalismo mundial
girava, como continua girando,
em torno dos grandes feitos militares, a exemplo da Guerra do Iraque, onde são investidos bilhões
de dólares mensais.
As bombas, os armamentos e as
táticas bélicas vêm
sendo cultivados e
desenvolvidos como parte da própria cultura estabelecida. Trata-se,
propriamente, de
uma cultura da
violência, implementada, racionalizada, treinada e,
por isso, aceita.
O duro de admitir é quando ela
muda de lado.
Quando recaem
nas mãos dos terrorismos, ou
quando recaem nas mãos do
PCC. Quando as armas mudam
de mãos, percebe-se o que elas são
capazes de fazer!
Seja num conflito armado entre
dois Estados, seja numa guerra civil, seja numa ação terrorista, seja
na expressão da ganância imperialista de uma potência econômica, ao longo do século 20, a fusão
da violência com a tecnologia somente se demonstrou cada vez
mais determinante e decisiva, inclusive sempre jogando a favor
daqueles que possuem maior poderio econômico para investir em
armamentos e mecanismos de
policiamento e guerra.
Mais do que nunca, durante todo o século 20, a violência deu
mostras de absoluta atrocidade e
de infinita capacidade destrutiva
(pense-se nas práticas de Auschwitz, pense-se no emprego de armas químicas e bombas atômicas,
pense-se no uso de pesticidas desfolhantes no Vietnã, pense-se nas
técnicas de tortura da ditadura
militar brasileira...) e, ainda que se
evoquem fundamentos históricos, motivos raciais, determinismos ambientais, necessidades sociais, fatores econômicos, motivos
e estratégias políticas, a violência
há de ser compreendida, potencializada ou não
pela tecnologia,
em se tratando de
um mecanismo
de amplificação
do vigor humano,
como algo impassível de justificação.
No nosso caso
brasileiro, nossa guerra não é de
natureza étnica, de natureza política ou de religiosa, a exemplo do
11 de Setembro. No nosso caso,
nossa guerra é de natureza econômica. A injustiça e a desigualdade
encontram tamanha a espantosa
proporção que cultivamos, em
nossos celeiros sociais, dia-a-dia,
a criminalidade que hoje nos
atordoa.
Nas sociedades contemporâneas, a associação entre violência
e tecnologia facilita a cunhagem
de um homem-objeto, de acordo
com o protótipo moderno do homem controlado-ordenado, ou
seja, de um homem que se torna
objeto de consumo em face de
uma potencialização cada vez
maior de transformação da condição humana em condição
inumana.
Ora, produzimos esses homens-objeto toda vez que um idoso deixa de ser atendido em um plantão
da Previdência Social, a cada vez
que uma criança morre por desnutrição, a cada vez que um cidadão tem justiça denegada, a cada
vez que se recorre à corrupção do
Estado como única forma de
"azeitar" o funcionamento da Justiça. Nós só não
nos dedicamos a
esses temas, mas
eles estão aí.
Não é de hoje
que experimentamos a sensação de
vivermos em uma
guerra, ao nível
internacional, e
muito menos é de
hoje que se fala
em guerra civil no
Brasil. O Rio de Janeiro já parou diversas vezes por
conta disso.
É certo que toda prática de violência envolve a quebra da dignidade da pessoa humana, seja ela
psíquica, seja ela física, seja ela de
caráter moral. A violência, como
leciona Guilherme Assis de Almeida, em sua tese de doutoramento pela USP, vem entendida
como uma ação ou omissão invasiva da esfera de outrem, capaz de
gerar prejuízo (moral, físico, psíquico), e é exatamente a exploração dessa esfera da condição humana como prática de domínio e
exercício de maceração e domesticação dos corpos que se deve
considerar atentatória de todo e
qualquer entendimento lúcido
acerca dos direitos humanos, sobretudo em nosso contexto de tumulto social.
Vive-se há um certo tempo sob
a roupagem de que se está em um
Estado de Direito. Trata-se de
uma pura ilusão; suas estruturas
estão se desmanchando há um
bom tempo, se é que chegaram a
se consolidar algum dia no Brasil!
Crime organizado, corrupção,
nepotismo, evasão de divisas, desvios eleitorais, sucateamento do
Estado, privatização do público,
negligência com
causas públicas,
crimes fiscais... se
querem causas, aí
estão. Tudo isso
faz parte do samba que enovela e
balança, em berço
esplêndido, a brasilidade, e, certamente, isso não é
de hoje.
Se as causas dos
problemas nacionais não são de
hoje, também se
pode dizer que humanidade e
bestialidade já se confundem há
um certo tempo, como afirma
Habermas. Parece que se vive
uma terra alienada de homens,
mas habitada por arrogância, estupidez, desatino e irracionalidade. Chegamos tanto a estranhar o
outro que no outro vemos o inimigo. O inimigo do PCC, o inimigo burguês, o inimigo imigrante,
o inimigo muçulmano, o inimigo
sem-terra. O que estamos fazendo
de nossa ética?
As experiências do passado,
construídas na base da exploração e da injustiça, não deixarão de
visitar o cidadão de hoje. Pouco
muda na transposição do milênio. A continuidade do passado
de explorações e desigualdades se
projeta em direção a um futuro
corroído em suas entranhas.
A história humana, com suas
contradições e vivências, trilhará
o sentido dialético que a ela sempre trouxe o sabor amargo do retorno ao passado doloroso, mas
que também sempre trouxe o livre frescor da brisa da renovação
e do esquecimento.
Está em nossas mãos o poder de
mudar o sentido dessa experiência, muito mais do que propalar
soluções finais, como pena de
morte e outras formas de legitimação da ação irrestrita do Estado. O restabelecimento da ordem
social é urgente e necessário, mas
a ação imediata não substitui uma
ação de fundo que deve penetrar
nas entranhas dos problemas socioeconômicos brasileiros.
O Estado de Direito precisa encontrar sua existência prática na
vida dos cidadãos, não haja dúvida. Antes, no entanto, é necessário que se pense que a reforma das
instituições passa pela reforma
das mentalidades e das consciências, bem como das práticas, que
as norteiam em suas metas e juízos mais corriqueiros.
Se há algo em que pensar, este
algo se chama: justiça.
O advogado Eduardo C. B. Bittar, 32, é livre-docente e doutor, professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, membro do Grupo de Conjuntura Internacional da mesma universidade e secretário-executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos, ligada ao Núcleo de Estudos da Violência
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