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CECILIA GIANNETTI
Felix culpa
Às vezes olho pela varanda
do hotel e tenho certeza de que jamais circularam carros por essa faixa de terra
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"OUTRORA, SE BEM me lembro -eu me lembrava",
ruminou para dentro de
sua taça a amiga de colégio. "Então
"vambora'", retruquei, na sala de estar onde uma motocicleta CB 400
comprada no Mercado Livre ("Vintage, tem freio traseiro a disco, o
problema é que a síndica não deixa
pôr moto na garagem do prédio")
ocupava boa parte do espaço entre a
janela e o sofá. Sem piscar nem tossir: bastava arrumar a pequena mala. Pequena, sim: só se aprende a levar bem poucos sapatos, roupas,
quase nenhuma bugiganga de perfumaria depois de se já ter penado algumas vezes arrastando peso inútil
por estradas, rodoviárias e aeroportos. No mais, acolhidas na casa de
um funcionário brasileiro da companhia para a qual a dona da moto
trabalha, não me meto a levar muita
tralha. E se for um bangalô "mutcho
loco" e liliputiano? Melhor que a bagagem não ultrapasse minha altura
desta vez.
No primeiro dia em Ha'iku
(Maui), por incrível que pareça -e
mesmo para mim, que a essa altura
conheço bastante bem o inacreditável, este parece sempre mais normal
que para meus amigos-, avisto na
rua um conhecido do Brasil. Há
tempos só o encontrava na janelinha do Facebook, onde, conjugados
em acenos eletrônicos discretos,
tentávamos não perder o fiapo de
realidade que nos une. Aqui não nos
reconhecemos de imediato: na vida
real, hoje estou de óculos de grau, e
ele -cujo rosto aparece meio coberto por verdadeiras lunetas-, aqui
fora, no mundo, passeia sem elas.
E as pessoas que conhecíamos,
tantos anos? "Perderam seus contornos essenciais, são outra gente",
eu quis julgar, mas aí achei que não
devia me meter nesse papo roto no
avião. Hoje são coisa diferente da
confusão da juventude, o resto passou e foi. Agora fica o jet lag. Deve ser
o vôo, a insônia, o sair por aí sem avisar. Como se tivesse entrado outra
vez, para novo passeio, deslocado no
tempo, no Fusca roubado ao fim do
último ano do ginásio. Não há Fusca
nesta parte da ilha; às vezes olho pela varanda do hotel e tenho certeza
de que jamais circularam carros por
essa faixa de terra. E tudo é quase
igual ao que se vê lá em casa, no bairro onde vivo; exceto pela poesia nostálgica que imprimimos à descrição dos recantos que, sabemos, só iremos visitar uma ou duas vezes na vida. E a luz de um poste que não consegue se decidir entre ficar acesa-amarelada e apagar-se totalmente,
os pássaros que miram bondosos somente nos toldos do restaurante lá
embaixo, mas acabam fazendo de
banheiro um homem grisalho só e
seu copo de vinho à área descoberta.
Ilesos por questão de segundos, um
trio de americanos e sua pele translúcida passa pela mesa do velho sem
notar o que o distingue dos outros
homens que bebem na varanda, nesta pequena calçada particular, em
que a única coisa que acontece, exceto o desastre do pombo, é um jogo
de futebol local na TV. Toda a ilha
boceja docemente, entregue à preguiça e à bebida. O falatório acelerado do locutor que narra a partida a
todo momento leva a crer que um
dos times está prestes a fazer um gol
implacável; mas o locutor mente,
imprime emoção onde ela não existe no jogo morto. O poste torto neste
eterno apaga-e-acende, o futebol no
zero a zero. Se quisessem saber "por
que uma viagem tão sem propósito?", eu ia dizer que se trata de um
erro brilhante: colocamos países entre nós para justificar nosso silêncio.
Felix culpa.
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