São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Mãe de UTI

Sofia nasceu às 19h57, em 24 de abril de 2001, e foi diretamente para a UTI. "Tive vontade de me levantar daquela maca com a barriga aberta e ir atrás dela", recorda-se a mãe, Maria Julia Miele, uma terapeuta corporal especialista em massagem chinesa.
No dia seguinte, em seu quarto de hospital, Maria, confiante, recompunha-se do trauma. "Pensava secretamente que tudo não tinha passado de um mal-entendido. Minha genética familiar era tão forte e perfeita que, obviamente, minha filha sairia daquela muito bem e rápido."
"Eu não sabia de nenhuma previsão futura, nem sabia quando seriam as cirurgias. Não sabia como seria a vida dela, não sabia qual dos tantos sentimentos contidos dentro de mim seria mais útil para nós duas. E, sem saber que caminho tomar, optei pelo único sentimento possível e que nunca seria demais sentir: o amor incondicional."

 

A primeira cirurgia ocorreu quando a criança tinha dez dias de vida. "O tempo não passava, meu estômago estava enrijecido. Enquanto eu e meu marido (Luís) caminhávamos pelas ruas próximas da maternidade, eu via as pessoas almoçando, sorrindo, caminhando com pressa."
Em dezembro, véspera de Natal, Sofia ainda estava na UTI, com diagnóstico de insuficiência renal, infecção generalizada e falência múltipla dos órgãos. Talvez, imaginavam os médicos, não sobrevivesse até o Réveillon. Sobreviveu. "Cruzamos a porta da UTI e passamos toda a noite com ela no meu colo. Nós duas estávamos vestidas de branco."
"UTI é o lugar mais horrível para estar. É um lugar que testa violentamente os limites humanos daqueles que a habitam diariamente, minuto a minuto. Ali são testados mães, pais e médicos, mesmo os mais experientes."
"É muito difícil ter um filho internado na UTI. São momentos solitários, nos quais é preciso não só aprender a lidar com os próprios limites, com a própria impotência e com o próprio egoísmo mas também tentar determinar sinceramente até onde ir."
"É conviver com o medo 24 horas por dia. É sentir o coração disparando cada vez que se chega e só senti-lo bater ritmado depois de pousar os olhos no bebê e ter a certeza de que está tudo bem. Medo da perda, medo da piora, medo do futuro incerto, medo do presente. Medo da própria capacidade de suportar as notícias."
 

Apesar de todos os prognósticos, Sofia melhorou -e Maria se sentiu livre dos medos. "Nem estamos acreditando", disse uma das médicas a Maria. "Voei para a UTI, que estava em festa. Às 15h30 do dia 9 de maio de 2002, um ano e um mês depois do nascimento, enfim a chegada em casa. Enquanto entrava pela porta, agarrada à criança, chorava e repetia: "Não acredito!".
"Eu me sentia mãe de verdade após mais de um ano de espera: como era bom poder acordar no meio da noite e ir beijá-la, dar seu banho dentro do quarto, e não mas na UTI, cantar para ela segurando-a em meus braços."
No início de julho, no entanto, Sofia já estava de volta ao hospital e, mais uma vez, na UTI. "Voltei para casa arrasada, parecia que eu carregava um piano nas costas." No dia 30 daquele mês, o hospital chamou a família. Sofia tinha piorado. "Entrei tremendo na UTI."
 

Acompanhada de Luís, ela colocou a filha entre os braços. "Num ato de respeito, toda a equipe se retirou e foi para trás de um vidro onde ficava o monitor central."
"Meu marido se levantou e saiu. Ela, fria, nos meus braços, não estava mais lá; eu simplesmente não a sentia. Como um pássaro leve, tinha voado, sem barulho, sem alarde. Passou para algum lugar, e a porta se fechou, deixando-me aqui sozinha."
 

PS - Não estava previsto que o que você, leitor, acaba de ler fosse lido um dia. Para enfrentar a dor, Maria Julia Miele descreveu sua experiência de 13 meses em três hospitais em São Paulo (Incor, São Luiz e Samaritano). Esse misto de diário com reportagem era para ter ficado trancado numa gaveta, mas ela aceitou a sugestão de publicar sua história, intitulada "Mãe de UTI", a ser lançada pela editora Terceiro Nome no próximo semestre, por ter descoberto que não havia um livro para ajudar mães que vivessem semelhante situação. Neste mês, Maria começou a percorrer hospitais para formar grupos de mães cujos filhos estão em UTI e não têm, na maioria das vezes, com quem compartilhar sua dor e solidão. "As dores e a saudade não diminuíram, nem a memória apagou tudo o que eu presenciei, mas, com o passar do tempo, aprendi a lidar melhor com tudo isso; o passado não muda, mas, de certa forma, tudo acaba mudando com o tempo", diz Maria.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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