São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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DANUZA LEÃO

Lembrando de meu pai


E nos dizia que por amor uma mulher deve fazer tudo, pois nada é mais importante na vida


HOJE ACORDEI pensando em meu pai. Não é todos os dias que a gente se lembra dos que já se foram; e de alguns, quando a gente lembra, não dá para falar, porque ainda dói muito. Mas um dia você acorda lembrando de alguém que significou muito na sua vida, mas que na época você não sabia, só foi saber depois.
Não sou muito de datas, mas durante anos lembrei do dia do seu aniversário, do dia de sua morte; o tempo foi passando e fui aos poucos me esquecendo desses dias. E pensando bem, lembrar dele no dia do seu aniversário, da sua morte, não tem nenhuma importância. Tanto não tem que hoje, que não tem nada a ver com essas datas, acordei lembrando muito dele.
Desde que éramos pequenas, volta e meia eu e minha irmã ouvíamos nosso pai falar, um pouco brincando, um pouco a sério: "vocês não me dão valor, não escutam o que eu digo, um dia vocês vão ver que eu tinha razão". É claro que entrava por um ouvido e saía pelo outro, e ele, felizmente, não percebia.
Talvez depois que as pessoas morrem tenhamos uma tendência a idealizá-las, e é exatamente o que sinto pelo meu pai. Mais do que uma questão de inteligência, ele teve, desde cedo, o dom de saber o que era a vida; sem ilusões, guardando mesmo assim um lado muito poético dentro dele. O que, aliás, nos confundia muito. Quando falava no amor, era de um lirismo total; quando ainda jovem, foi eleito Príncipe dos Poetas Capixabas, teve seus poemas publicados em Vitória, onde morávamos, e tinha até o físico de um poeta -um pouco no gênero Castro Alves. E nos dizia que por amor uma mulher deve fazer tudo, pois nada é mais importante na vida.
Mas veja como era complicado ser sua filha: logo que me casei, não existiam telefones no Rio. Ou você comprava -e era um bem que se declarava no Imposto de Renda- ou se conseguia por meio de pistolão. Como meu marido era dono de um jornal, não foi difícil conseguir um, e meu pai disse logo que o telefone tinha que ser no meu nome, pois se alguma coisa acontecesse, tipo o casamento não dar certo, o telefone seria meu. Ora, como compreender um pai com posições tão diferentes? Quando pedi que ele me explicasse como poderia me dar conselhos tão opostos, ele sem nenhuma paciência, disse "ah, mas será que vocês não entendem? Mas não faz mal, um dia vocês vão entender". Como ele tinha razão.
Era como se ele tivesse nascido sabendo onde a vida nos ia levar, como se tivesse o dom de prever o futuro; por experiência ou um dom muito especial e raro, sabia onde iríamos parar com nossas escolhas, nossos casamentos, nossos amores. E bem que tentou nos explicar como é a vida, mostrando que em circunstâncias exatamente iguais, uma hora se deve agir de um jeito, na outra de outro jeito, mas isso é difícil de explicar -e de entender. Talvez por saber demais, a vida para ele foi muito pesada.
Ah, meu pai sabia das coisas. O que eu não daria para sair hoje com ele para almoçar, comermos aquela moqueca de lagosta de que ele gostava tanto e falar de tudo que aconteceu em todos esses anos, depois que ele se foi.
Do quanto ele tinha razão em tudo que me dizia; que saudade de você, meu pai.

danuza.leao@uol.com.br


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