São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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VIOLÊNCIA

Engenheiro civil que permaneceu 14 dias aprisionado trocou cooperação por banho, comida e fim de maus-tratos

Sequestrado embala maconha no cativeiro

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 14 dias de cativeiro, o engenheiro civil Fernando (nome fictício), 36, foi de ator a embalador de maconha, tentou se "enturmar" com a quadrilha que o sequestrou e trocou a cooperação com seus algozes por banho, comida e o fim dos maus-tratos. "É a luta pela sobrevivência", resumiu.
Libertado depois que sua família pagou um resgate de R$ 98 mil, Fernando chega a rir das situações absurdas pelas quais teve de passar: o cativeiro era um ponto-de-venda de drogas em São Bernardo do Campo (Grande São São Paulo) e seus carcereiros, três traficantes locais.
Tanto refém quando carcereiros apresentavam, nesse caso, características majoritárias no perfil elaborado pela DAS (Divisão Anti-Sequestro) de São Paulo.
Fernando está no grupo de 66% das vítimas -homem com mais de 18 anos. Os três carcereiros eram jovens -na faixa de 20 anos-, desempregados e de baixa renda, como a maioria dos sequestradores presos (veja quadro nesta página).
A relação entre tráfico e sequestro é o que mais surpreendeu Fernando e os policiais que investigam o caso. Dos sequestradores presos que tinham antecedentes criminais, segundo o perfil da DAS, poucos tinham passagem por tráfico -70% faziam roubos.
Mas a relação entre os dois tipos de crime cresce quando o assunto é cativeiro. "Muitos cativeiros ficam na biqueira -ponto-de-venda de drogas- ou têm alguma relação com os traficantes locais", afirmou o delegado José Paulo Zappi, da DAS de São Paulo.

Sequestro à brasileira
"É o sequestro à brasileira", disse o sociólogo Túlio Kahn, pesquisador sobre sequestros e coordenador do Departamento de Estatísticas e Pesquisas do Ministério da Justiça.
O abrasileiramento está no contato direto e permanente entre refém e carcereiro, sem cuidados ou disfarces para evitar o reconhecimento, como ocorre nos sequestros mais profissionais.
"Hoje, são raros os casos de sequestro com isolamento total da vítima", afirma Kahn.
A banalização do sequestro ajuda a explicar o relacionamento no cativeiro e a escolha dos carcereiros. Geralmente, os guardiões da vítima são recrutados na comunidade local, sabem pouco dos líderes da ação -justamente para que, se forem presos, não indiquem os autores-, são os que recebem menos dinheiro pelo sequestro e não têm know-how desse tipo de crime.
Entre os carcereiros recrutados estão também os traficantes locais, como ocorreu no sequestro de Fernando.

Surpresas diárias
Do primeiro ao 14º dia de sequestro, Fernando viveu momentos de nervosismo e espanto. Foi apanhado às 16h de uma sexta-feira em uma rua de São Paulo, quando vistoriava uma obra, por homens vestidos de terno e gravata. Pelas estatísticas da DAS, a maioria dos casos ocorre de terça a quinta, das 18h às 22h.
Nos primeiros dias, os carcereiros avisaram que, se Fernando cooperasse na gravação de uma fita de vídeo para sua família, receberia regalias. Ele se negou, mas, amarrado na cama, não aguentou as dores no corpo e aceitou a proposta dos sequestradores dois dias depois.
"Eu falei: bom, como é o negócio da fita aí?", conta Fernando, rindo, ao lembrar da situação.
Com um fuzil na cabeça, Fernando recitou na gravação o que a quadrilha queria: que o grupo era profissional em sequestros e sabia tudo sobre a família -o que era mentira.
A encenação gravada pela quadrilha contou com uma câmera emprestada pela vizinhança e seis sequestradores dando palpites.
Depois de colaborar, Fernando foi acorrentado pelo pé e teve direito a banho e a três refeições diárias, duas com marmitex. A estratégia deu certo. A família pagou o resgate e o engenheiro foi solto. Antes de ser libertado, porém, Fernando "cooperou" com a quadrilha mais uma vez, embalando trouxinhas de maconha.
"Uma das regras é tentar se enturmar, tentar dizer que você é pai de família, assim como eles", disse o engenheiro, que deixou o cativeiro sem ferimentos.



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