São Paulo, terça-feira, 20 de outubro de 2009

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CECILIA GIANNETTI

Plano de verão


Traficantes não deveriam abater helicópteros da polícia. Não na cidade que idealizei de dentro da prisão hospitalar


EU TINHA UM plano de verão. Era o mais perfeito que alguém jamais poderia ter concebido pra estação (cá estabeleço egoisticamente que todos incluiriam na concepção de plano perfeito para o período do verão a atividade da escrita, quando a maioria absoluta preferiria, após a praia, churrasco, sexo, sono, TV. Qualquer coisa exceto escrever).
Outro parêntese, antes de partir ao plano egoísta (por verão compreendemos também, em cidade fervida de praias, a primavera).
Passemos ao plano. Vejam qual simplicidade. Acordar cedo, ir a Ipanema, aprender a técnica local de me largar e de pegar amizade com a dona de alguma barraca que alugue cadeiras de praia e venda comes e bebes, a quem passaria a confiar meus pertences sempre que desejasse dar um mergulho; ir e voltar sem apreensão. Todos são bons.
Daí, ler bastante, abandonada na areia. Voltar pra casa depois da hora do almoço, deitar com o que restasse do livro companheiro de praia, dormir também com ele. Acordar por volta das 17h, tomar café como se fosse manhã novamente. Trabalhar então teclando fábulas e frilas (ah, a vida romântica do escritor contemporâneo!) até as 23h, ou mais que rendesse. E no dia seguinte, praia outra vez, desabater do agasto, mexer novas ideias na cabeça.
O que ocorreu foi o seguinte, porém: começou por chover dia sim, dia sim, dia não, dia sim. Em seguida, caí e quebrei um pé e mais alguma coisa no entorno; operaram o pé, colocaram pinos e uma placa de metal muito à moda androide de Blade Runner, que agora é parte do meu corpo, do tornozelo à perna.
Sempre fui de cair muito; problema pessoal com a gravidade. Por exemplo: o braço direito, primeiro gesso da minha vida, foi aos sete meses de idade. Agora uma cirurgia, ferros se amalgamando à minha carne, eu sem ver rua, rua sem me ver. Estava predestinada a esse tombo? Não; mas se planejasse menos e prestasse mais atenção aos buracos da cidade, talvez não tivesse caído.
Lá fora, um dilúvio. Cá dentro, o pensamento acanhado de quem olha do teto pro livro e do livro pra janela nublada. Nem a primavera quis participar do meu plano. Mesmo ela tem se comportado mal, muita chuva violenta e ventos, desde que chegou, quando devia ser feita de um calor pouco mais brando apenas que o dos dois próximos meses.
Pois nem em primavera rebelde, que já vem com horário de verão, nem em estação alguma helicópteros da polícia deveriam ser abatidos por traficantes e ônibus queimados em série. Não na cidade que idealizei de dentro da prisão hospitalar.
A cidade do meu plano, que sonhei perfeita no sono da anestesia, era a que tudo prometia: de balneário falido à terra pacificada. Cidade-contradição, plano mal calculado -tirou de nós até obras de Hélio Oiticica, perdidas numa pira doméstica.
Não saio do quarto. Saudades do Rio, apesar de morar nele; não saindo à rua, idealizo-a, devolvo a ela certa dose perdida de romance. Se existe um problema com o sonhar demais, é esse, pisar em falso.
Tanta esculhambação já estaria predestinada a acontecer aqui? Ou vem de descuidos prenunciados desde sempre, a que não demos ouvidos, já surdos pelos gritos de vitória, ecos do futuro: o redondo 2014, o enforcado 2015, o olímpico 2016? Segunda opção, leitores, segunda opção...

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