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RUBEM ALVES
A dor
O velhinho (sei que eu não
deveria falar "velhinho",
não é politicamente correto, deveria falar "o cidadão da terceira
idade" ou o "idoso"; mas o da minha estória era um "velhinho"
mesmo...), pois o velhinho, após
50 anos de ausência, voltava pela
primeira vez ao sítio onde passara sua infância. Visitava as matas, os caminhos, o riachinho.
Quantas vezes o saltara com um
pulo! E resolveu fazer o que sempre fizera: pulou... e caiu no meio.
Assentado na água ele comentou:
"E não é que o danado do riachinho nesses anos todos alargou e
eu não havia notado?".
Aconteceu coisa parecida comigo, não com um riachinho, mas
com um bujão de gás. Quantas
vezes levantei um bujão de gás
com u'a mão só. E foi o que fiz,
corrijo-me, foi o que tentei fazer.
Não realizei a proeza porque, no
momento mesmo em que peguei
o bujão, uma mordida no nervo
da minha coluna me obrigou a
largá-lo no chão. E lá fui eu, gemendo e andando como um caranguejo. Aí, como o velhinho, esse velhinho que lhes escreve, lamenta que os bujões tenham dobrado de peso sem que eu tenha
sido avisado. Daí pra frente tem
sido dor, tudo por causa do maldito bujão.
A dor me fez lembrar um incidente relatado no livro do Gustavo Corção, "A descoberta do outro". Eu o li quando era adolescente. Esqueci tudo, menos do
dente do tenente Lino. O tenente
Lino trabalhava num escritório
burocrático, tinha de atender o
público. Acontece que o tenente
Lino estava com dor de dente. E
antes que a pessoa dissesse a que
vinha o tenente Lino abria a sua
boca e punha o dedo no dente.
Foi então que tive uma revelação. Descobri onde se encontra o
centro do universo. O centro do
universo se encontra no lugar que
está doendo. Muitos anos depois,
lendo o "1984" de Orwell, encontrei esse parágrafo: "No campo de
batalha, na câmara de torturas,
num navio que afunda, as questões pelas quais você está lutando
são sempre esquecidas, porque o
corpo incha até que enche o universo todo. E mesmo quando você
não está paralisado de pavor ou
gritando de dor, a vida é uma luta
que se desenrola, momento a momento, contra a fome, o frio, a insônia, contra uma azia ou uma
dor de dente".
Estou certo de que o tenente Lino, ao lhe ser entregue o jornal pela manhã, não ligaria a mínima
para as notícias mas chamaria o
entregador de jornais e lhe mostraria o seu dente...
Não sei o que os astrônomos dizem sobre o centro do universo. E
onde quer que ele esteja não faz a
mínima diferença. Mas o tenente
Lino sabia que o centro do universo era ele ou, mais precisamente, o seu dente.
Já passei por várias experiências
de dor. Hérnia de disco. Um ortopedista me disse que só opera hérnia de disco quando o sofredor está a ponto de cometer suicídio.
Tudo, menos dor. Cálculo renal.
No hospital aplicaram-me seis
ampolas de Buscopan. Foi igual a
água. Aí eu estava verde e comecei a vomitar de dor. O médico
então disse à enfermeira: "Aplique uma Dolantina nele..." Ela
aplicou. Não se passaram nem
cinco minutos. Eu estava no Paraíso. Senti, então, a felicidade indescritível que não depende de
prazer algum. Bastava não ter
dor. Sem dor o universo é maravilhoso.
Diz a Bíblia que foi Deus que inventou a dor para castigar a mulher. Quem desobedece sofre.
"Com dor parirás filhos..." Outros
consideram a dor como parte da
pedagogia do universo para produzir a evolução da alma. Sofra o
corpo para que a alma fique bela!
Um universo assim não merece o
meu respeito. Quem inventou a
dor, eu acho, foi o Diabo e, no
meu caso, a falta de juízo...
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