São Paulo, terça-feira, 21 de março de 2006

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RUBEM ALVES

A dor

O velhinho (sei que eu não deveria falar "velhinho", não é politicamente correto, deveria falar "o cidadão da terceira idade" ou o "idoso"; mas o da minha estória era um "velhinho" mesmo...), pois o velhinho, após 50 anos de ausência, voltava pela primeira vez ao sítio onde passara sua infância. Visitava as matas, os caminhos, o riachinho. Quantas vezes o saltara com um pulo! E resolveu fazer o que sempre fizera: pulou... e caiu no meio. Assentado na água ele comentou: "E não é que o danado do riachinho nesses anos todos alargou e eu não havia notado?".
Aconteceu coisa parecida comigo, não com um riachinho, mas com um bujão de gás. Quantas vezes levantei um bujão de gás com u'a mão só. E foi o que fiz, corrijo-me, foi o que tentei fazer. Não realizei a proeza porque, no momento mesmo em que peguei o bujão, uma mordida no nervo da minha coluna me obrigou a largá-lo no chão. E lá fui eu, gemendo e andando como um caranguejo. Aí, como o velhinho, esse velhinho que lhes escreve, lamenta que os bujões tenham dobrado de peso sem que eu tenha sido avisado. Daí pra frente tem sido dor, tudo por causa do maldito bujão.
A dor me fez lembrar um incidente relatado no livro do Gustavo Corção, "A descoberta do outro". Eu o li quando era adolescente. Esqueci tudo, menos do dente do tenente Lino. O tenente Lino trabalhava num escritório burocrático, tinha de atender o público. Acontece que o tenente Lino estava com dor de dente. E antes que a pessoa dissesse a que vinha o tenente Lino abria a sua boca e punha o dedo no dente.
Foi então que tive uma revelação. Descobri onde se encontra o centro do universo. O centro do universo se encontra no lugar que está doendo. Muitos anos depois, lendo o "1984" de Orwell, encontrei esse parágrafo: "No campo de batalha, na câmara de torturas, num navio que afunda, as questões pelas quais você está lutando são sempre esquecidas, porque o corpo incha até que enche o universo todo. E mesmo quando você não está paralisado de pavor ou gritando de dor, a vida é uma luta que se desenrola, momento a momento, contra a fome, o frio, a insônia, contra uma azia ou uma dor de dente".
Estou certo de que o tenente Lino, ao lhe ser entregue o jornal pela manhã, não ligaria a mínima para as notícias mas chamaria o entregador de jornais e lhe mostraria o seu dente...
Não sei o que os astrônomos dizem sobre o centro do universo. E onde quer que ele esteja não faz a mínima diferença. Mas o tenente Lino sabia que o centro do universo era ele ou, mais precisamente, o seu dente.
Já passei por várias experiências de dor. Hérnia de disco. Um ortopedista me disse que só opera hérnia de disco quando o sofredor está a ponto de cometer suicídio. Tudo, menos dor. Cálculo renal. No hospital aplicaram-me seis ampolas de Buscopan. Foi igual a água. Aí eu estava verde e comecei a vomitar de dor. O médico então disse à enfermeira: "Aplique uma Dolantina nele..." Ela aplicou. Não se passaram nem cinco minutos. Eu estava no Paraíso. Senti, então, a felicidade indescritível que não depende de prazer algum. Bastava não ter dor. Sem dor o universo é maravilhoso.
Diz a Bíblia que foi Deus que inventou a dor para castigar a mulher. Quem desobedece sofre. "Com dor parirás filhos..." Outros consideram a dor como parte da pedagogia do universo para produzir a evolução da alma. Sofra o corpo para que a alma fique bela! Um universo assim não merece o meu respeito. Quem inventou a dor, eu acho, foi o Diabo e, no meu caso, a falta de juízo...


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