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Menina é "esquecida" no Pinel por 4 anos
Sem doença que justifique a internação, ela permanece na instituição para quadros psiquiátricos agudos porque não há quem a abrigue
Diretor de hospital diz que, apesar de pedidos reiterados, prefeitura não indica local para encaminhá-la; mãe está presa e avó não a quer perto
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
MARLENE BERGAMO
REPÓRTER FOTOGRÁFICA
A menina 23225 -é assim
que ela está registrada nos
prontuários médicos- foi internada aos 11 anos no Hospital
Psiquiátrico Pinel. "Inteligente, agressiva, indisciplinada,
sem respeito, fria e calculista",
escreveram dela os que a levaram à instituição-símbolo da
doença mental de São Paulo.
Psiquiatras, enfermeiros e
psicólogos do Pinel logo viram
que o caso de 23225 dispensava
internação. Deram-lhe alta.
Mas, como a garotinha não tem
quem a queira por perto, já são
mais de 1.500 dias, ou 4 anos e
três meses esquecida dentro da
instituição de tipo manicomial.
A menina não é psicótica ou
esquizóide; não é do tipo que
ouve vozes ou vê o que não existe. Uma médica do hospital resumiu assim o problema: "O
mal dela é abandono".
Em termos técnicos, 23225
foi catalogada no Código Internacional de Doenças como sendo F91, que designa transtorno
de conduta -desde agressividade até atitudes desafiantes e
de oposição.
Miudinha, cabelos cacheados, 23225 tinha apenas quatro
anos quando a avó colocou-a
em um abrigo para crianças de
famílias desestruturadas. O
ciúme, diz a mulher, vai acabar
com ela. Era só 23225 ver outra
criança recebendo carinho e armava uma cena. Jogava-se no
chão, chorava. Virou "difícil".
BUQUÊ NO CHÃO
Até os sete anos, a menina
não conhecia a mãe, que cumpria pena por roubo e tráfico de
drogas. A mulher é usuária de
crack. Reincidente, enfrenta
agora outra temporada de sete
anos atrás das grades.
O primeiro encontro das
duas foi um desastre. Uma saía
da Penitenciária Feminina, a
outra a esperava, vestidinho
branco, e um buquê de flores
para entregar. A mulher xingou
a filha e o buquê ficou no chão.
No dia 8 de novembro de
2005, o abrigo conseguiu que
um juiz internasse 23225 na
Clínica de Infância e Adolescência do Pinel, voltada para
quadros psiquiátricos agudos.
Os atendimentos duram no
máximo 18 dias e o paciente é
logo reenviado para seu convívio normal. Se cada 18 dias contassem como uma internação, a
menina 23225 já teria sido internada 86 vezes.
DEITADA NA RUA
"Essa internação contraria
toda e qualquer política atual
de saúde mental, além de provocar danos irreversíveis, já
que [a menina] vivencia cotidianamente a realidade de uma
enfermaria psiquiátrica para
casos agudos e é privada de viver em sociedade e de frequentar a escola", relatou o diretor
do Pinel, psiquiatra Eduardo
Augusto Guidolin, em 8 de
março de 2007.
À Folha, a avó da menina,
evangélica da igreja Deus é
Amor, disse que acaba de conseguir um emprego com carteira assinada -serviços gerais,
R$ 480 por mês. "Não vou pôr a
perder por causa dela".
Certa vez, em fuga do Pinel,
23225 deitou-se no meio da
rua em que mora a avó -queria
morrer atropelada: "Eu tinha
acabado de dizer que aqui ela
não podia ficar".
O diretor do Pinel pediu a todos os santos dos abrigos: à Associação Aliança de Misericórdia, Parque Taipas, à Associação Lar São Francisco na Providência de Deus, ao Instituto
de Amparo à Criança Asas
Brancas, de Taboão da Serra,
ao Abrigo Irmãos Genésio Dalmônico, ao Abrigo Bete Saider,
em Pirituba, à Associação Santa Terezinha, ao Abrigo Amen-4, entre outros, que arrumassem uma vaga para 23225 viver. A menina moraria no abrigo, poderia frequentar uma escola, e receberia atendimento
psiquiátrico ambulatorial em
um Centro de Atendimento
Psicossocial mantido pela Secretaria Municipal de Saúde.
Não deu certo. Ou os abrigos
alegavam não ter vagas, ou diziam não ter vagas para alguém
com o "histórico Pinel". Em
duas oportunidades, dois abrigos concordaram em acolher a
menina. Ela quis voltar para o
hospital. Outras tentativas precisariam ser feitas.
PROTESTOS
O médico Guilherme Spadini
dos Santos, então coordenador
do Napa (Núcleo de Atenção
Psiquiátrica ao Adolescente),
do Pinel, escreveu ainda em
2005, em um relatório: "O isolamento social é extremamente
prejudicial aos quadros de
transtorno de conduta. O hospital psiquiátrico não é local
para tratamento de longa duração. A paciente precisa ser encaminhada para serviço ambulatorial especializado para continuar seu tratamento e para
que se promova sua reinserção
na sociedade".
Em 18 de dezembro de 2006,
o diretor do Pinel informava
que a menina já se encontrava
em alta médica havia vários
meses, permanecendo na instituição por ordem judicial. "Essa situação permanece porque
a Secretaria de Assistência e
Desenvolvimento Social não
consegue nos indicar um abrigo
para onde se possa encaminhá-la. [A menina] está sendo privada de uma vida social e educacional a que tem direito, conforme o Estatuto da Criança e
do Adolescente."
Em 10 de novembro de 2009,
Guidolin endereçou ao procurador regional dos direitos do
cidadão do Ministério Público
Federal, um ofício em que manifesta "indignação desta equipe técnica que por diversas vezes acionou o Judiciário solicitando a desinternação desses
adolescentes que na ocasião
precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade a seu atendimento médico ambulatorial. Cabe à Secretaria Municipal de Assistência
e Desenvolvimento Social definir o local de abrigamento."
OUTRAS CRIANÇAS
No mesmo texto, o diretor dizia haver outras crianças "nessa mesma situação".
Em 6 de agosto de 2008, o Pinel enviou ao Judiciário pedido
de desinternação de 23225, e
de dois outros adolescentes: L.
(internado por ordem judicial
em 3/2/2005, alta no mesmo
ano) e A.C. (internada em 17/
8/2007, em alta desde 12/11/
2007).
Segundo funcionários do Pinel, até a última sexta-feira,
apenas a adolescente 23255 seguia internada. Agora, a secretaria diz ter encontrado uma
vaga para a menina.
Os nomes de 23255 e seus parentes foram suprimidos dessa
reportagem, assim como quaisquer referências que permitam
identificá-la, em atenção ao
que estabelece o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
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