São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2008

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Reação ao caso Isabella é "sadomasoquista", diz criminalista

Para o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes, ex-defensor do pediatra Eugênio Chipkevitch, casal suspeito do crime foi encurralado pela mídia

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Paulo Sérgio Leite Fernandes, 72, já viu tantos casos criminais em seus 51 anos de advocacia nessa área que não vê muita novidade na comoção que o caso Isabella provoca.
"O povo é sadomasoquista e gosta de tragédia. Num certo sentido, o homem gosta de ver o sofrimento dos outros e se castiga por isso. A rotina é o sofrimento, é o drama. A comédia é a exceção", diz um dos mais antigos criminalistas de São Paulo ainda em atividade.
Fernandes tem experiência em comoções. Em 2002, ele defendeu o pediatra Eugênio Chipkevitch, que foi condenado a 124 anos de prisão por pedofilia quando já não era seu cliente. Na entrevista a seguir, ele diz que falta equilíbrio à imprensa no caso Isabella.  

FOLHA - O sr. se lembra de crimes que tenham provocado uma reação popular tão violenta quanto a morte de Isabella?
PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES
- Eu fui advogado de Eugênio Chipkevitch, médico acusado de pedofilia em 2002. Esse caso provocou uma celeuma igual ou pior do que o homicídio praticado contra essa menina.

FOLHA - Houve tentativa de agredir policiais ou suspeitos?
FERNANDES
- Houve um acoroçoamento [estímulo] popular muito grande contra o Eugênio. Não chegou a agressão física porque a polícia não deixou. Comecei a advogar em 1957 e não me lembro de reações tão violentas quanto essas duas [Isabella e Eugênio]. Antes disso, há casos famosos, como a da Gata Mineira, que foi morta por um homem da alta sociedade. Houve o caso de dois jovens cariocas [Cássio Murilo e Ronaldo] que foram acusados de matar uma menina [Aída Cury, de 18 anos, em 1958, após ter sido estuprada]. Davi Nasser fez uma cobertura longa na revista "O Cruzeiro", a mais importante da época. Todos foram condenados. Houve o caso de Osmany [Ramos, cirurgião plástico, condenado nos anos 80 a 47 anos de prisão por homicídio e tráfico].

FOLHA - Por que o caso Isabella provoca tanta comoção?
FERNANDES
- Em primeiro lugar porque é uma menininha. Em segundo lugar porque a imputação teórica, a suspeita, é contra a madrasta, que normalmente é vista como a rainha má. Você se lembra da Branca de Neve, da maçã envenenada. Isso está no subconsciente popular. Em terceiro lugar porque o pai estaria junto da madrasta [no momento do crime]. Essa combinação provoca uma comoção social enorme a ponto de prejudicar o exame equilibrado dos fatos.

FOLHA - O sr. acredita que o direito de defesa do pai e da madrasta estão sendo cerceados?
FERNANDES
- Acho que no aspecto formal não há cerceamento. Porque eles têm advogados, têm a garantia da proteção da defesa, inclusive física. Mas, no sentido de conseqüências na mídia, isso provoca uma retração muito grande da possibilidade de defesa. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus. É errada muitas vezes, mas essa voz funciona como pressão psicológica. Há casos clássicos de pressão popular que geraram injustiças. O caso Dreyfus na França é clássico [o capitão Alfred Dreyfus foi acusado em 1894 por monarquistas de ter vendido segredos militares aos alemães e acabou condenado à prisão perpétua]. Ele foi condenado pela imprensa francesa, foi desvitalizado durante boa parte da vida. Aí um colega seu, o jornalista Émile Zola, saiu em defesa dele.

FOLHA - O sr. acha que o casal suspeito no caso Isabella já foi julgado pela mídia como Dreyfus?
FERNANDES
- Julgado, não, mas o casal está numa situação muito delicada perante a mídia. Creio que foram encurralados. A posição da imprensa em relação a eles não é muito equilibrada. Falta equilíbrio.

FOLHA - A imprensa deveria dar as costas para a curiosidade mórbida do público em relação ao caso?
FERNANDES
- O sr. quer uma resposta franca? Vou lhe dar. O jornal, rede de TV ou rede de rádio que deixar de acompanhar esse caso perde venda, perde Ibope, perde dinheiro, em última instância.

FOLHA - Os jornais hoje, diferentemente do que ocorria nos anos 50, vivem de assinaturas. Elas representam 80%, 90% da circulação.
FERNANDES
- Mas se você mandar um jornal para a minha casa sem notícia da Isabella eu vou procurar o "Estadão". Se ligo a TV e não vejo notícias, vou procurar outra estação. São os fatos da vida.

FOLHA - A mídia está errada em tratar o caso com tanta ênfase?
FERNANDES
- A imprensa não erra no sentido objetivo da coisa. A imprensa existe para que o seu acionista não vá à falência. Nesse sentido, não erra. Mas, no sentido ético, você tem de examinar isso da mesma forma que o indivíduo que é obrigado a se alimentar tomando a comida do outro. Ele não pode morrer de fome porque aí a família dele pode morrer de fome também. Isso é muito complicado. Não há respostas fáceis. Às vezes a imprensa não tem saída.

FOLHA - O sr. acha razoável do ponto de vista criminal que a polícia trabalhe com uma única hipótese?
FERNANDES
- Não acho que a polícia trabalhe com uma única hipótese. Há algumas cartas que estão na manga da polícia, que vocês [da imprensa] não conhecem. Tenho 50 anos de advocacia criminal e creio que há alguma coisa no subterrâneo que vocês ainda não sabem. As notícias que a imprensa consegue colher são parciais. O óbvio não é a verdade. A polícia oferece duas laranjas para a imprensa, mas às vezes a fruta boa é uma maçã. Às vezes o esclarecimento está escondido na gaveta do delegado. Isso vai depender muito da solércia [astúcia] da imprensa.

FOLHA - O cerco da mídia hoje é diferente do que ocorria nos anos 50?
FERNANDES
- Não, é igualzinho. "O Cruzeiro" vivia às custas do sangue dos homicídios. O povo se apaixonava da mesma forma que no caso da Isabella.

FOLHA - Por que esse caso provoca tanta paixão?
FERNANDES
- O povo é sadomasoquista. O ser humano vive permanentemente entre Deus e o demônio. Se você noticiar o nascimento de uma criança, ninguém lê. Mas, se você noticiar o assassinato de uma menina, todo mundo compra o jornal. O povo gosta de tragédia. Você vê criança de oito anos comentando o caso com o pai.

FOLHA - Qual seria a raiz desse sadomasoquismo?
FERNANDES
- O ser humano nasceu assim. Num certo sentido, o homem gosta de ver o sofrimento dos outros e se castiga por isso. A imprensa vive muito de sangue. A rotina é o sofrimento, é o drama. A comédia é a exceção. O homem vive muito mais da dor do que da alegria.


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