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Reação ao caso Isabella é "sadomasoquista", diz criminalista
Para o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes, ex-defensor do pediatra Eugênio Chipkevitch, casal suspeito do crime foi encurralado pela mídia
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Paulo Sérgio Leite Fernandes, 72, já viu tantos casos criminais em seus 51 anos de advocacia nessa área que não vê muita novidade na comoção
que o caso Isabella provoca.
"O povo é sadomasoquista e
gosta de tragédia. Num certo
sentido, o homem gosta de ver
o sofrimento dos outros e se
castiga por isso. A rotina é o sofrimento, é o drama. A comédia
é a exceção", diz um dos mais
antigos criminalistas de São
Paulo ainda em atividade.
Fernandes tem experiência
em comoções. Em 2002, ele defendeu o pediatra Eugênio
Chipkevitch, que foi condenado a 124 anos de prisão por pedofilia quando já não era seu
cliente. Na entrevista a seguir,
ele diz que falta equilíbrio à imprensa no caso Isabella.
FOLHA - O sr. se lembra de crimes
que tenham provocado uma reação
popular tão violenta quanto a morte
de Isabella?
PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES - Eu
fui advogado de Eugênio Chipkevitch, médico acusado de pedofilia em 2002. Esse caso provocou uma celeuma igual ou pior do que o homicídio praticado contra essa menina.
FOLHA - Houve tentativa de agredir policiais ou suspeitos?
FERNANDES - Houve um acoroçoamento [estímulo] popular
muito grande contra o Eugênio.
Não chegou a agressão física
porque a polícia não deixou.
Comecei a advogar em 1957 e
não me lembro de reações tão
violentas quanto essas duas
[Isabella e Eugênio]. Antes disso, há casos famosos, como a da
Gata Mineira, que foi morta por
um homem da alta sociedade.
Houve o caso de dois jovens cariocas [Cássio Murilo e Ronaldo] que foram acusados de matar uma menina [Aída Cury, de 18 anos, em 1958, após ter sido
estuprada]. Davi Nasser fez
uma cobertura longa na revista
"O Cruzeiro", a mais importante da época. Todos foram condenados. Houve o caso de Osmany [Ramos, cirurgião plástico, condenado nos anos 80 a 47
anos de prisão por homicídio e
tráfico].
FOLHA - Por que o caso Isabella
provoca tanta comoção?
FERNANDES - Em primeiro lugar
porque é uma menininha. Em
segundo lugar porque a imputação teórica, a suspeita, é contra a madrasta, que normalmente é vista como a rainha má. Você se lembra da Branca
de Neve, da maçã envenenada.
Isso está no subconsciente popular. Em terceiro lugar porque
o pai estaria junto da madrasta
[no momento do crime]. Essa
combinação provoca uma comoção social enorme a ponto
de prejudicar o exame equilibrado dos fatos.
FOLHA - O sr. acredita que o direito
de defesa do pai e da madrasta estão sendo cerceados?
FERNANDES - Acho que no aspecto formal não há cerceamento. Porque eles têm advogados, têm a garantia da proteção da defesa, inclusive física.
Mas, no sentido de conseqüências na mídia, isso provoca uma
retração muito grande da possibilidade de defesa. Dizem que
a voz do povo é a voz de Deus. É
errada muitas vezes, mas essa
voz funciona como pressão psicológica. Há casos clássicos de
pressão popular que geraram
injustiças. O caso Dreyfus na
França é clássico [o capitão Alfred Dreyfus foi acusado em
1894 por monarquistas de ter
vendido segredos militares aos
alemães e acabou condenado à
prisão perpétua]. Ele foi condenado pela imprensa francesa,
foi desvitalizado durante boa
parte da vida. Aí um colega seu,
o jornalista Émile Zola, saiu em
defesa dele.
FOLHA - O sr. acha que o casal suspeito no caso Isabella já foi julgado
pela mídia como Dreyfus?
FERNANDES - Julgado, não, mas
o casal está numa situação muito delicada perante a mídia.
Creio que foram encurralados.
A posição da imprensa em relação a eles não é muito equilibrada. Falta equilíbrio.
FOLHA - A imprensa deveria dar as
costas para a curiosidade mórbida
do público em relação ao caso?
FERNANDES - O sr. quer uma resposta franca? Vou lhe dar. O
jornal, rede de TV ou rede de
rádio que deixar de acompanhar esse caso perde venda,
perde Ibope, perde dinheiro,
em última instância.
FOLHA - Os jornais hoje, diferentemente do que ocorria nos anos 50,
vivem de assinaturas. Elas representam 80%, 90% da circulação.
FERNANDES - Mas se você mandar um jornal para a minha casa sem notícia da Isabella eu
vou procurar o "Estadão". Se ligo a TV e não vejo notícias, vou
procurar outra estação. São os
fatos da vida.
FOLHA - A mídia está errada em
tratar o caso com tanta ênfase?
FERNANDES - A imprensa não erra no sentido objetivo da coisa.
A imprensa existe para que o
seu acionista não vá à falência.
Nesse sentido, não erra. Mas,
no sentido ético, você tem de
examinar isso da mesma forma
que o indivíduo que é obrigado
a se alimentar tomando a comida do outro. Ele não pode morrer de fome porque aí a família
dele pode morrer de fome também. Isso é muito complicado.
Não há respostas fáceis. Às vezes a imprensa não tem saída.
FOLHA - O sr. acha razoável do ponto de vista criminal que a polícia trabalhe com uma única hipótese?
FERNANDES - Não acho que a polícia trabalhe com uma única
hipótese. Há algumas cartas
que estão na manga da polícia,
que vocês [da imprensa] não
conhecem. Tenho 50 anos de
advocacia criminal e creio que
há alguma coisa no subterrâneo que vocês ainda não sabem.
As notícias que a imprensa consegue colher são parciais. O óbvio não é a verdade. A polícia
oferece duas laranjas para a imprensa, mas às vezes a fruta boa
é uma maçã. Às vezes o esclarecimento está escondido na gaveta do delegado. Isso vai depender muito da solércia [astúcia] da imprensa.
FOLHA - O cerco da mídia hoje é diferente do que ocorria nos anos 50?
FERNANDES - Não, é igualzinho.
"O Cruzeiro" vivia às custas do
sangue dos homicídios. O povo
se apaixonava da mesma forma
que no caso da Isabella.
FOLHA - Por que esse caso provoca
tanta paixão?
FERNANDES - O povo é sadomasoquista. O ser humano vive
permanentemente entre Deus
e o demônio. Se você noticiar o
nascimento de uma criança,
ninguém lê. Mas, se você noticiar o assassinato de uma menina, todo mundo compra o jornal. O povo gosta de tragédia.
Você vê criança de oito anos comentando o caso com o pai.
FOLHA - Qual seria a raiz desse sadomasoquismo?
FERNANDES - O ser humano nasceu assim. Num certo sentido, o
homem gosta de ver o sofrimento dos outros e se castiga
por isso. A imprensa vive muito
de sangue. A rotina é o sofrimento, é o drama. A comédia é
a exceção. O homem vive muito
mais da dor do que da alegria.
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