São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN

O judeu Silvio Santos e o câncer

Menos 55 mil pessoas receberão diagnóstico de câncer este ano, nos Estados Unidos -número suficiente para superlotar o estádio do Pacaembu, em São Paulo, obrigando pelo menos 15 mil pessoas a ficar de pé.
Divulgada semana passada por associações de saúde pública americanas, a estimativa levou cientistas e médicos a comemorar, entusiasmados, uma vitória contra o câncer.
Não é um dado isolado ou esporádico. As estatísticas oficiais exibem tendência percebida desde o início da década de 90, com queda do número de mortes.
Nos últimos dez anos, o número de mortes por câncer de mama, por exemplo, caiu 25%.
A permanecer a tendência, teríamos, num curto prazo de três anos, apenas nos Estados Unidos, menos um Maracanã superlotado de vítimas do câncer.
Explicam a festejada curva declinante os avanços tecnológicos, hábeis em detectar melhor os tumores -mas, em especial, a terapia da palavra.
Na terapia da palavra, autoridades públicas, médicos, cientistas, educadores e até publicitários martelam a relação direta entre câncer e tabaco.
Numa luta desigual contra os milhões em propaganda da indústria do fumo, conseguem passar a mensagem e inibir, em parte, o vício.
O resultado está aí. Menos fumo, menos tumores.
Martelam também dados sobre a importância de exames periódicos para o diagnóstico precoce, decisivo ao melhor tratamento.
A mensagem só prospera graças aos meios de comunicação, que, se, por um lado, aceitam a propaganda de cigarro, por outro, abrem espaço às advertências sobre seus perigos.
Mesmo que parciais, as vitórias contra o câncer contam como o simples ato de educar salva vidas e transforma palavras em remédio.
Por mais estranho que pareça, esse é o ângulo mais adequado para analisar a entrevista do empresário Silvio Santos, publicada em Veja.
Na sua franqueza, ele deixou claro, com rara transparência, quais as forças que impulsionam a TV aberta no Brasil, no vale-tudo pela audiência.
Indagado sobre se um empresário de comunicação não deveria "levar cultura ao povo", Silvio respondeu: "Temos de dar ao povo o que o povo quer. Se for mulher com pouca roupa, será mulher com pouca roupa".
Logo em seguida, acrescentou: "Na minha emissora, eu não interfiro. Cada um faz o programa do jeito que quer. Quem fala é o número. Quem dá ibope pode mostrar o que quer".
Em nome do Ibope e da vontade popular, seja ela qual for, um dos mais importantes empresários de comunicação do país topa quase tudo por dinheiro.
A palavra, assim, só tem sentido e relevância se render publicidade -não saber.
É a lógica de mercado, alegam; é o caminho inescapável do sucesso que, em maior ou menor grau, orienta os meios de comunicação, mais visíveis na TV, devido à sua audiência popular.
O valor à palavra me faz resvalar, aqui, num campo minado, além da batida responsabilidade social do empresário e dos supostos deveres de quem tem o privilégio de uma concessão pública.
Na entrevista, Silvio Santos informou ser judeu. Nenhum povo foi vítima por tanto tempo de perseguições tão profundas -o que nos fez ter medo ou, no mínimo, receio, da vontade popular sem limite, açulada pelas elites políticas.
Nascemos com a obrigação de dar satisfação, de nos defender, acusados de matadores de Jesus e gananciosos, gente disposta a controlar o planeta com maligna inteligência.
Desfazer preconceitos, educar, conscientizar integra a própria noção de sobrevivência, numa batalha verbal contra o racismo e a intolerância.
Aprendemos, desde cedo, que a palavra cura com a mesma eficiência com que mata.
Na luta pela sobrevivência, transmitiu-se de geração em geração, em meio às crônicas fugas, que a maior riqueza que um indivíduo consegue carregar é o conhecimento.
Consequência óbvia, o transmissor de conhecimento -o educador e o professor -sobe no pedestal, numa reverência ao poder do verbo. Está aí uma das molas de propulsão do progresso intelectual dos judeus, assim como de qualquer nação.
Essa mola explica por que nações que colocaram no pedestal os professores, a começar pelos do ensino fundamental, são mais ricas.
Pela terapia da palavra, ensina-se como driblar da miséria ao câncer.
Filho de imigrantes europeus, Silvio Santos, exemplo de trabalhador incansável, tem uma notável história -a de um camelô que virou empresário de sucesso.
Mas, certamente, essa trajetória brilhante não existiria se aquele camelô não tivesse recebido a educação que recebeu dos pais, chegando a técnico de contabilidade -na época, grau de qualificação alto para um trabalhador.
Silvio Santos é apenas o showman de uma nação que não aprendeu ainda essa lição básica.


PS - Na próxima semana, estarei no Canadá cobrindo para a Folha e para o UOL o maior encontro já realizado sobre negócios e educação. Haverá uma cobertura em tempo real, que poderá ser acessada pela página do Aprendiz (www.aprendiz.com.br).
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E-mail gdimen@uol.com.br


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