|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sabatina / Contardo Calligaris
Em sabatina, o psicanalista , escritor e colunista da Folha diferencia "perdedores' e "infelizes' e comenta depressão em jovens
Projeto de felicidade leva à insatisfação, afirma Contardo
O PROJETO DE SERMOS felizes é profundamente errado, concebido para nos
manter na insatisfação, requisito da sociedade de consumo. A
afirmação é do psicanalista Contardo
Calligaris, 59, colunista da Folha, sabatinado ontem pela manhã num Teatro
Folha lotado, em SP. Entrevistado pelos jornalistas da Folha Marcos Augusto Gonçalves, Cleusa Turra, Marcos Flamínio Peres e Ivan Finotti,
Contardo falou de remédios ("Lexotan acho legal"), relação de pais e filhos ("os adultos deveriam parar de pedir para que jovens sejam felizes") e
o valor da solidão ("Não sou gregário.
Coletividade grande, tenho alergia").
FELICIDADE
O verdadeiro perdedor é
aquele que, na última hora,
olhando para trás, vai ter a impressão de que desperdiçou a
sua corrida. O que ele acumulou, tudo isso me parece bastante acessório. Para mim, o
perdedor é aquele que não conseguiu viver sua vida com toda
a intensidade que ela merece. O
que não tem nada a ver com felicidade. O projeto de sermos
felizes é profundamente errado, concebido para nos manter
na insatisfação, o que é absolutamente necessário na sociedade de consumo. O ganhador é
quem teve uma alta qualidade
de experiência, seja qual for,
que tenha sido intensamente. A
felicidade, eu sou contra. Sexo
não é felicidade, é alegria.
REMÉDIO X ANÁLISE
Lexotan eu acho legal. Primeiro, porque eu não estou nada convencido de que haja
qualquer oposição de fundo
real entre a psiquiatria, ou a
neuroquímica, e a psicanálise,
ou as terapias pela palavra de
modo geral. As pesquisas que
existem dizem não somente isso mas que, enquanto intervenções, elas se fortalecem. Usar
antidepressivos ajuda as pessoas diagnosticadas com depressão em 36% dos casos. A
psicoterapia pela palavra também ajuda as pessoas em 33%,
34% dos casos. As duas coisas
juntas, por uma razão misteriosa, se fortalecem e ajudam 64%,
65% das pessoas. Segundo,
existe uma questão de fundo:
sou materialista. Acredito que
o afeto, a emoção ou o pensamento tenha ou deva ter algum
dia uma descrição neuroquímica absolutamente apropriada.
ABUSO DE REMÉDIOS
Não tenho nada contra o uso
de medicamentos, mas tenho
bastante contra o uso indiscriminado de psicotrópicos, sobretudo no caso da depressão.
Acho que os antidepressivos
têm de ser prescritos num caso
de depressão, e não simplesmente porque o cara não está
feliz. Há uma certa tendência
nessa direção. E pior ainda no
caso da adolescência e da infância, em que o uso de psicotrópicos está se tornando um caso
muito sério. Porque os pais não
agüentam nem um pouco a infelicidade dos filhos, seja qual
for a idade deles. Existe uma intervenção neuroquímica cada
vez maior em adolescentes. Na
infância e na adolescência, a
gente vive momentos alegres e
tristes. E uma das razões pelas
quais a gente faz filhos é para
que eles encenem uma felicidade que não temos. Se o cara não
sorri, pílula. Sou contra isso.
ADOLESCENTE
A adolescência de fato, como
uma idade separada da vida, é
recente, pós-Segunda Guerra,
quando os adultos começam a
criar uma fase da vida específica à qual atribuem algumas características como rebeldia, insubordinação. O que sobrou de
desejo de sair daquele cenário
de "american beauty" [beleza
americana], de desejo de aventura, foi pendurado nas costas
dos adolescentes. Eles é que se
encarregariam da nossa rebeldia, nossa vontade de sermos
outros, de realizar sonhos que
não conseguimos nem confessar a nós mesmos. Os adolescentes se encarregaram disso
muito bem, até porque são excelentes intérpretes do desejo
dos adultos.
DEPRESSÃO EM JOVENS
A vida deles [crianças e adolescentes] não é engraçada.
Não acho uma idade legal: essa
é uma visão idealizada dos
adultos. A infância e a adolescência são épocas muito problemáticas da vida. Na infância,
estamos longe de corresponder
fisicamente e simbolicamente
ao que a gente deseja; a palavra
da gente é atropelada. Na adolescência, é pior ainda. São épocas de extremo conflito interno, definição identitária, descoberta de fantasias e orientação sexuais. Eu acho que os
adultos deveriam parar de pedir para que os jovens sejam felizes, porque isso só serve à
vontade que eles têm de ver nas
crianças um espetáculo de felicidade.
SEXO NA VELHICE
Há um imaginário social de
que a pessoa a partir de certa
idade deveria estar acima disso,
dessas "baixarias". Durante décadas, a idéia era de que a menopausa era fim não da fecundidade, e sim da feminilidade.
Eu fui treinado muito bem. Tive uma avó que adorava. E que,
aos 70, 75 anos, ainda era cantada na rua. Uma vez, ela estava
sentada no cinema comigo, e vi
que chegou um cara e sentou ao
lado dela. Achei estranho porque tinha outros lugares. De repente, ela levanta xingando o
cara, me pega pela mão e troca
de fileira. Ele havia colocado a
mão na minha avó, o que demonstra que aos 75 anos rola. E
que ela era muito bonita.
SÓ OU ACOMPANHADO?
Não me coloquei essa pergunta de forma radical, mas, de
alguma forma, é uma questão
que está ali o tempo inteiro. A
gente tem sempre momentos
em que precisa de uma certa
solidão, de recolhimento interior. Sempre vivi com alguém,
mas não sou gregário. Coletividade grande, tenho uma alergia
séria. Situação gregária é qualquer situação em que o grupo
me manda fazer coisas que não
são exatamente as que quero
fazer. Quando o grupo ameaça
a minha individualidade.
MAIO DE 68
Eu militava na esquerda italiana. Tinha mais contato com a
contracultura norte-americana do que com a cultura política
européia, porque estava casado
com uma norte-americana e ia
ao país com freqüência. O que
mais importava era a revolução
na maneira de pensar e de se relacionar, era a utopia concreta,
que estava na maneira de conviver de quem militava em 68.
E essa utopia eu acho que vingou. Foi a única verdadeira revolução do século 20, ou a única
de sucesso.
20 ANOS DE BRASIL
Vejo mudanças concretas
enormes no Brasil de 1986 até
hoje. Cheguei a um país onde
aconteciam coisas completamente inéditas para mim. As
pessoas, por exemplo, compravam linhas telefônicas para investimento. Era um negócio estranhíssimo. Mas nunca achei
o país provinciano. Nem naquela época. Especialmente
SP, que é uma das cidades menos provincianas do mundo.
Muito menos do que Paris e,
num certo sentido, menos provinciana do que Nova York. E
certamente menos do que uma
cidade italiana.
Assista a vídeo com íntegra da sabatina
Texto Anterior: Blitz no entorno do Mercado Municipal de SP acaba em confronto com comerciantes Próximo Texto: Frases Índice
|