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PASQUALE CIPRO NETO
De estupros e gozos
O leitor prefere a adversativa de "Estupra, mas não mata" ou a aditiva de "Se o estupro é inevitável, relaxa e goza!"?
U
M BELO DIA, aprendemos na
escola que as orações coordenadas podem ser aditivas,
adversativas, alternativas etc.
Aprendemos também que a conjunção aditiva clássica é "e", que a adversativa clássica é "mas" etc.<
O nome já diz que as aditivas estabelecem nexo de adição, como se vê
em "Amor de Índio" (de Beto Guedes e Ronaldo Bastos): "Lembra que
o sono é sagrado e alimenta de horizontes o tempo acordado de viver".
As adversativas, como o nome
também já diz, expressam relação
de adversidade, oposição. O célebre poema "Confidência do Itabirano" (de Drummond) termina
com esta maravilha: "Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas
como dói". É de notar a opção do
Poeta pelo ponto final depois de
"parede", de que resultam a separação das duas orações que formariam um período composto e o emprego do "mas" como palavra inicial da oração de que participa. Comum no texto literário, esse recurso enfatiza a relação de adversidade estabelecida pelo "mas".
Embora o "e" tradicionalmente
estabeleça relação de adição, não
raro se encontra esse conectivo
com matiz adversativo, como neste
trecho (de Drummond): "O amor é
grande e cabe no breve espaço de
beijar". Ou nestoutro, de Machado:
"Uns olhos tão lúcidos, uma boca
tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa!" O excerto (de "Memórias Póstumas") é relativo a Eugênia, personagem do romance.
A seqüência da passagem é esta:
"Esse contraste faria suspeitar que
a natureza é às vezes um imenso
escárnio. Por que bonita, se coxa?
Por que coxa, se bonita?". Mutatis
mutandis, pode-se fazer com o conectivo "mas" o que fez Machado
com o contraste "bonita/coxa":
"Ele rouba, mas faz"; "Ele faz, mas
rouba". Em ambos os casos, o
"mas" tem valor adversativo, mas
parece claro que para o emissor da
primeira frase o ato de roubar é
menos grave do que é para o emissor da segunda sentença.
Essa história de "Rouba, mas faz"
me traz à mente outra pérola do rosário de misérias provindas de uma
das tantas tristes figuras públicas
deste país: "Estupra, mas não mata". Nessa lufada filosófica, a estuprar se contrapõe matar. O estupro
seria admissível, desde que a vítima
não fosse assassinada. Então tá.
Quando proferida, essa quintessência do delírio causou protestos
indignados etc. Nada mais justo.
Mas perguntar não ofende: a sociedade que condena essa barbaridade
não é a mesma que criou e adotou o
lema "Quando (ou "Se') o estupro é
inevitável, relaxa e goza!", pérola da
quintessência da futilidade?
Talvez você não se lembrasse, porém é essa a frase original. A "criatividade" ou a conveniência reduziram-na ("Relaxa e goza!"), e ela foi
parar em bocas e mentes de calibres vários (de tarados a sexólogos,
por exemplo). O leitor prefere a adversativa de "Estupra, mas não
mata" ou a aditiva de "Quando o
estupro..., relaxa e goza!"?
Cabe lembrar que a raiz (latina)
de "gozo" é a mesma de "gáudio"
("alegria", "regozijo"), sentimento
que tem sido visto, por exemplo,
nos nossos aeroportos: os viajantes
são literalmente estuprados e, obedientes ao casto lema brasuca, relaxam, exultam... e gozam! É isso.
inculta@uol.com.br
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