São Paulo, quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO
"A crase não foi feita para..."

NO ANO PASSADO, tive a honra de ser um dos entrevistadores do poeta Ferreira Gullar em sua participação na sabatina da Folha. Aliás, fui eu que fiz a tal pergunta sobre a relação dele com os concretistas e o concretismo. A resposta de Gullar causou polêmica, manifestos, réplica, tréplica etc.
Quando cheguei ao camarim do teatro em que se deu o evento, Gullar já estava lá. Antes mesmo de me cumprimentar, foi logo dizendo: "A frase é minha, sim". "Então você lê as bobagens que escrevo", respondi, feliz com a honraria.


O acento indicador de crase pode alterar a estrutura da frase e o teor da mensagem, ou seja, pode mudar tudo


O autor do célebre e já trintenário "Poema Sujo" referia-se a um texto em que afirmei que, "salvo engano", a frase "A crase não foi feita para humilhar ninguém" era dele. E não é que um dos nobres integrantes do nosso nobilíssimo Parlamento teve a idéia de apresentar um projeto de lei que propõe a extinção do acento indicador de crase? Assessores do parlamentar procuraram Gullar para pedir a ele autorização para o uso da tal frase no arrazoado do projeto. O tom da coisa é demagógico, populista, típico dos sombrios dias que vivemos em relação à ignorância -alguns luminares da nossa intelectualidade adotam o paternalismo tosco, obscurantista, que resulta na falsa defesa dos fracos e oprimidos, ou seja, na manutenção destes nas trevas profundas da ignorância. Gullar mandou todos às favas, é claro ("Não entenderam coisa alguma").
A esta altura, convém relembrar o que vem a ser o fenômeno da crase. Originária do grego, a palavra "crase" significa "fusão", "ação de misturar". Em termos estritos, crase pode ser, por exemplo, a mistura de álcool e gasolina, coca-cola e rum etc. O "Aurélio" diz que em medicina "crase" significa "mistura harmoniosa dos humores corporais". Em se tratando do idioma, crase vem a ser a fusão de duas vogais iguais numa só. Há crase em "ler", por exemplo. Na evolução do latim ("legere") para o português, chegou-se a "leer" e depois a "ler".
A crase (= "fusão") se dá na transformação de "ee" em "e". Há crase também em "Vou à escola". A preposição "a" (regida pelo verbo "ir" -ir a algum lugar) se funde com o artigo "a", determinante do substantivo feminino "escola". Nesse caso, a crase, ou seja, a fusão (da preposição "a" com o artigo "a") é marcada com o acento grave.
Posto isso, vejamos uma questão (adaptada) do último vestibular da UFRGS, que pedia o preenchimento das lacunas deste trecho: "Não notamos, mas precisamos da memória também, por exemplo, para associar -- bicicleta caída -- um tombo que levamos ou para associar o trajeto da cozinha -- sala". As opções eram, respectivamente, estas: aquela ou àquela, a ou à, a ou à. Na primeira lacuna, coloca-se "aquela" ou "àquela"? Tanto faz? A resposta não é "tanto faz"; é "depende". Se a opção for por "aquela", colocar-se-á "a" na segunda lacuna ("para associar aquela bicicleta caída a um tombo que..."); se for por "àquela", a segunda lacuna ficará em branco ("para associar àquela bicicleta caída um tombo que...").
Percebeu, caro leitor, que o acento indicador de crase muda tudo, mexe com a frase toda etc.? Então, nada de cair em soluções mágicas, facilitaristas ou demagógicas. A solução é outra: ler, estudar... É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Em gravação, chefe do PCC confessa ataques e suborno
Próximo Texto: Trânsito
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.