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Os muito ricos não gargalham
Eles não têm dinheiro no bolso nem chave da porta; não freqüentam lugares
da moda nem usam roupas com grifes à mostra; não carregam malas nem passaporte. Eles não são ricos: são muito ricos
DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA
Os muito ricos adoram brincar de pobres. Para as férias,
costumam ter uma casa simples, mas muito confortável,
numa praia ainda não descoberta do Nordeste, e por nada
deste mundo deixariam uma
revista fotografar este paraíso.
Lá, usam bermudas velhas,
camisetas desbotadas, andam
descalços e só recebem os muito íntimos. Quando isso acontece, oferecem uma cachacinha
local e nada lhes dá mais prazer
do que uma comida muito simples, especialidade da mulher
do caseiro. O casal trabalha
com eles há 30 anos, usa bermuda, camiseta, anda descalço
mesmo para servir a mesa
e tem uma familiaridade
com os patrões que só o
tempo permite.
Os carros dos muito
ricos costumam ser pretos, de marca indefinida e
nunca do ano.
NÃO FREQUENTAM FAMOSOS TEMPLOS DE LUXO E NUNCA USAM CHAVES
Os muito ricos não ostentam;
os homens mandam fazer
suas gravatas e lenços sob
medida no Charvet, que fica num segundo andar na
Place Vendôme, endereço
em Paris que só poucos conhecem, e suas mulheres
têm jóias maravilhosas mas
guardadas no cofre de um banco -na Suíça, de preferência-,
que são usadas apenas em jantares muito privados, só entre
eles. E não usam uma só roupa
ou acessório que seja "identificável". Têm seus costureiros
exclusivos, que só elas conhecem, e que não fazem a menor
questão de aparecer nas revistas de moda, para que suas criações não sejam usadas por estrelas de cinema na noite do
Oscar ou manequins e assim
não sejam vulgarizadas.
Só quem faz parte desse seletíssimo mundo é capaz de identificar a origem daquele vestido, daquela bolsa ou daquele
sapato. Afinal, qual a graça de
usar um vestido com a grife de
St. Laurent, se esse vestido não
foi desenhado pelo próprio e,
desde que a marca foi vendida,
no ano 2000, a cada estação
muda o designer?
O porta-voz da luxuosíssima
Bottega Veneta declarou recentemente: "Nós nos rendemos ao prazer da nossa fantástica qualidade e mão-de-obra, e
isso diz mais do que qualquer
grife". Detalhe: em seus artigos
não há um só sinal sugerindo de
onde eles vêm.
Jamais um logotipo, jamais
uma letrinha que identifique de
onde saíram aquelas preciosidades. Mas quem sabe -e só
quem sabe- sabe.
Os muito ricos, até por cansaço de serem ricos há tanto tempo, viajam -e vivem- à maneira deles; em altíssimo padrão,
mas na maior das discrições.
Não é um problema de dinheiro, claro, mas os famosos templos de luxo e riqueza não são
freqüentados por quem é rico
de verdade.
Um amigo meu, quando vai a
Londres, fica em um hotel que é
uma casa; uma casa normal, tipicamente inglesa, com poucos
quartos, onde só se hospedam
pessoas altamente recomendadas. Nesse hotel-casa, cada hóspede tem a chave da porta da
rua; não existe portaria, conseqüentemente também não
existem porteiros, e, no living
-confortável, charmoso e bem
inglês-, um bar com todas as
bebidas, os copos apropriados,
e um balde de gelo. O hóspede
se serve do que quer, e anota
num bloquinho o que consumiu, que será cobrado quando
for pagar a conta. Ah, e nessa
hotel/casa tem um gato, que está sempre passeando pela casa.
Pode ser mais chique?
Outra coisa invejável dos
muito ricos é que eles não usam
chave; a qualquer hora que cheguem, o motorista telefona do
carro, discretamente, avisando
que o patrão está chegando, e
um empregado estará esperando, com a porta já aberta. A arrumadeira ajudará madame a
se despir, perguntará se ela deseja alguma coisa -talvez um
chá-, o mordomo fará o mesmo com seu marido, eles dormirão em lençóis que, se não
são trocados todo dia, serão pelo menos passados todo dia, para não marcar o rosto, e o quarto ficará na mais perfeita ordem, sem uma só peça de roupa
em cima de uma cadeira.
NUNCA SÃO VISTOS NAS RUAS OU LOJAS E ADORAM DIZER QUE NÃO GASTAM
Eles nunca são vistos nas
ruas, nas lojas, nas joalherias.
São elas que vão até eles, muito
mais prático. Vendedores levam os itens mais novos e exclusivos das coleções e, nas raras vezes em que saem -afinal,
às vezes é preciso respirar um
pouco de ar puro-, se entram
num estabelecimento comercial são logo reconhecidos pelos vendedores; a conta vai diretamente para o escritório, e
o(s) pacote(s) é(são) entregue(s) em casa, pois rico não
carrega embrulho. E cuidado:
se acontecer de você sair com
alguém muito rico, é capaz da
conta sobrar para você, pois rico não costuma levar dinheiro
no bolso, nunca.
Os muito ricos adoram dizer
que não gastam; aquele vestido
maravilhoso é um Chanel antigo de 30 anos atrás, o outro foi
comprado há 15 numa lojinha
exclusivíssima no interior da
Espanha, e os lençóis, discretíssimos e sempre brancos, são
bordados por freiras de um
convento em Portugal.
Eles não falam de moda nem
de consumo, e o vinho que servem em casa é tão garantidamente o melhor que é servido
em garrafas de cristal -e não se
fala na origem nem de que ano
é, porque não precisa. Têm vários celulares, sendo um do motorista; quando saem, de onde
estiverem, telefonam para que
o carro já esteja na porta e eles
não precisem esperar.
Viajar, para os que são ricos
há muito tempo, é simples; para isto existe a femme de chambre -arrumadeira, para os
mais simples. Cada peça de
roupa é embrulhada em papel
de seda, cada pé de cada par de
sapatos vai embalado num saquinho de flanela. As malas
nunca vão cheias demais, para
que nada amarrote.
A secretária vai para o aeroporto três horas antes, levando
a bagagem, os bilhetes de avião
e os passaportes. Despacham as
malas, fazem o check-in, e o casal sai de casa, ela com uma bolsinha pequena, e o marido, sem
nada nas mãos.
NÃO LEVAM MALAS CHEIAS E NÃO COMEM NADA DURANTE A VIAGEM
Chegando ao aeroporto -dependendo da distância, vão de
helicóptero-, são levados não
para a sala vip, com aquele
amontoado de gente aproveitando para beber de graça, falando aos berros, crianças correndo e gente dormindo pelas
cadeiras. A sala vip dos muito
ricos é exclusiva, e nela eles
desfrutam de uma paz celestial
até a hora de entrar no avião,
quando são os últimos a embarcar. Só viajam em classe executiva, e durante a viagem não comem nada, só bebem água.
Estou falando dos que não
tem um avião particular, é claro. Aliás, avião, a não ser particular, hoje em dia só é praticamente usado pelos pobres.
Mas, se necessário, quando
se instalam em suas poltronas,
as mulheres costumam recusar o cobertor que a comissária
de bordo oferece; tiram da bolsa uma manta de pashmina,
comprada no Hermès de Paris
- US$ 3.000, pelo menos-, e
que dobrada é do tamanho de
um lenço. Qual a mulher que
se cobriria com uma manta
que já foi usada por outra pessoa, mesmo que tenha sido esterilizada?
Aliás, quando você quiser
saber se uma manta é mesmo
de pashmina, tire seu anel e
procure passá-la por dentro
dele. Se não passar, é
falsa.
Essas pessoas não
usam dinheiro, só
cartão de crédito.
Para dinheiro de bolso, é só telefonar para o banco onde têm
conta -na Suíça ou
em Luxemburgo- e
um portador levará o
dinheiro ao hotel,
em qualquer lugar
do mundo.
Em Paris costumam se hospedar no
Ritz ou no Meurice; a
femme de chambre
que os acompanha
nas viagens desfaz a
mala, põe nas gavetas
as peças menores e
pendura as roupas
-depois de passadas,
é claro. Mas quem se
hospeda nesses hotéis, se não quiser,
nem precisa levar sua
camareira, pois nesses
hotéis as coisas funcionam automaticamente; e na hora de ir
embora, as malas são
tão bem feitas como
quando chegaram.
Eles não freqüentam os restaurantes
da moda e preferem
almoçar no terraço da
Closerie des Lilas, onde não correm o risco de encontrar uma só pessoa que pertença
ao chamado jet set; talvez cruzem com um banqueiro que conhecem há anos, que chegou de
Genève naquela manhã, a negócios, e vai voltar na mesma tarde.
De trem, é claro.
DORMEM EM QUARTOS SEPARADOS E NÃO TÊM AMIGOS ÍNTIMOS
Curiosamente, os muito ricos
dormem em quartos separados;
não saem do quarto sem estarem formalmente vestidos, e o
casal se trata com a maior cerimônia. Nem sei como conseguem procriar. Não têm a menor intimidade com os empregados e não costumam ter amigos íntimos, por isso quando
têm seus problemas existenciais não têm com quem se
abrir, pois não costumam freqüentar analistas. Imagine, um
muito rico ser visto saindo do
consultório de um psi.
Não foi à toa que a imperatriz
do Japão, devido ao rigor do
protocolo, teve uma depressão
e ficou sem aparecer nem nas
cerimônias oficiais, por longos
anos.
E os muito ricos, muito ricos
mesmo, homens e mulheres,
têm uma coisa em comum:
nunca ninguém ouviu, e jamais
ouvirá, um deles dando uma
gargalhada.
No máximo, eles sorriem.
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