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Mulheres do crack
Pesquisa mostra como vício destrói a vida de garotas pobres, como Caroline, no relato acima, e de garotas de classe média, como Maiara, no relato abaixo
ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO
A vida de Carolina, 19, cabe na mochila. "É minha casa, meu quintal e minha penteadeira", afirma ela. A bolsa
de náilon é escudo em seu vai
e vem pela cracolândia.
Há quatro anos, sua rotina
só mudou quando deu a luz.
Gerou duas órfãs do crack, a
segunda em 29 de setembro.
"Só fiquei uma noite com
ela", conta, enquanto esvazia a mochila de objetos (Bíblia, caderno e rádio), roupas
(dois tops, uma legging e um
jeans) e produtos de higiene
(xampu e óleo corporal).
Carolina retrata a entrada
das mulheres no cenário do
crack, em 2002. É quando as
primeiras usuárias aparecem
em programas de reabilitação na cidade de São Paulo.
ESCUDO
"Antes elas eram invisíveis", diz Solange Nappo,
pesquisadora do Cebrid
(Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), da Universidade
Federal de São Paulo. "Para o
negócio, a presença feminina foi interessante. A mulher
pode se prostituir e prover o
crack para si e parceiros."
Coordenadora da pesquisa
"Comportamento de Risco de
Usuárias de Crack em relação
às DST/AIDS", Solange constata que as mulheres acabam
protegendo os homens.
"Antes, os usuários do sexo masculino não duravam
um ano, envolviam-se com a
marginalidade e acabavam
mortos. Com a mulher em cena, ela vira provedora."
Ao financiar o vício com o
corpo, elas se expõem a
doenças e à gravidez indesejada. Carolina descobriu ter
sífilis, ao fazer o pré-natal.
O posto público onde fez
as consultas fica próximo das
ruas por onde perambula em
busca da droga consumida
na gravidez. "Vomitava muito, mas não ficava sem."
A droga a levou para fora
do hospital 12 horas depois
do parto. Fugiu da maternidade, deixando a recém-nascida. Fez o mesmo quando
nasceu a primeiro filha, há
um ano e meio. Dos seios de
Carolina ainda jorram leite.
"Amamentei minha filha
uma noite. Disseram que não
ia sair com ela porque sou
drogada. Então dei no pé."
Entre as 80 mulheres ouvidas na pesquisa qualitativa
do Cebrid, os relatos são de
múltiplas gestações. Uma delas estava na nona gravidez.
"Os filhos indesejados do
crack são uma complicação a
mais para o Estado", diz Solange. "São abandonados
por mães que não desenvolvem afeto por bebês gerados
em situação de exploração."
Fugir de parceiros violentos é outra rotina. Carolina
anda se escondendo do suposto pai da filha. Ele tem 39
anos e é viciado como ela.
"Ele me encheu de porrada
para eu ir me virar na rua."
O motivo da briga é um dos
principais dados da pesquisa
do Cebrid: 62% das usuárias
de crack se prostituem todos
os dias para bancar o vício.
INEXPERIÊNCIA
Na mochila de Carolina há
espaço para camisinha dentro de um estojo de óculos.
Mas quem dita o uso é o
cliente. "O fato de não serem
prostitutas antes, complica a
vida das usuárias de crack",
afirma Solange. "Elas não sabem lidar com clientes nem
com os perigos da rua, ainda
mais na fissura pela droga."
A quantidade de programas depende da necessidade. "Hoje, só fiz um", diz Carolina, no meio da tarde. Os
R$ 16 vão virar "pedra" até o
anoitecer, combina com uma
amiga. "Do que adianta ficar
falando dessa vida?", indaga
a mulher que aparenta uns
40 anos. Nega-se a dar entrevista ou mesmo o nome. "Se
tô aqui é porque preciso."
A psicóloga Gisele Borsotte finaliza outro estudo, também do Cebrid, sobre a motivação de um grupo de 43
usuários de crack para cessar
o consumo. "Eles vão somando perdas em uma trajetória
crescente de deterioração",
diz. "Mas só têm motivação
para tentar parar quando se
veem diante da morte."
A cicatriz acima da sobrancelha é só um detalhe no rosto anguloso enfeitado por
olhos amendoados. Maiara,
32, não lembra como se machucou. "Devo ter caído",
afirma ela. Rara imprecisão
sobre o seu mergulho no
crack, ao longo de cinco dos
seus 17 anos de adição.
Internada no Instituto Intervir, nos arredores de São
Paulo, há pouco mais de um
mês, ela destoa pelo perfil socioeconômico. "Tive berço e
ótima formação escolar. Sou
de uma família normal de
classe média paulistana."
Filha única, foi educada
em um colégio tradicional.
"Estudava em escola de rico.
Meus pais podiam pagar,
mas não tudo o que as outras
crianças tinham. Batia a cabeça quando não tinha dinheiro, roubava meus avós."
PRIMEIRO CONTATO
Foi num retiro promovido
pela escola que experimentou maconha, aos 15 anos. O
uso seria recreativo até se
apaixonar por um viciado em
crack. "Fiz de tudo para tirá-lo daquela vida e acabei
doente de codependência."
Parou de estudar, fugia de
casa. Drogava-se. "Competia
com a droga pela atenção do
namorado. Tinha mais ciúme
do crack do que de mulher."
Fez da cocaína antídoto contra insegurança, inclusive na
gravidez -seu filho tem hoje
8 anos. "Usava dez papelotes
por dia. Passei a usar um por
semana. Administrava a droga como um remédio."
Não escondeu a prática de
risco do médico do convênio
que fez o pré-natal. O bebê
nasceu prematuro. Justifica-se: "Se parasse, a angústia,
os medos e a raiva de ter pedido tudo iam voltar. Prejudicaria mais o bebê".
SEM MORAL
Dois anos depois, Maiara
perderia a guarda do garoto
loirinho das fotos na cômoda. Ficou três sem vê-lo. Hoje, faz visitas quinzenais.
"Meu filho é saudável e faz
terapia", afirma. "Não tenho
moral. Ele bate no meu bumbum e me xinga de drogada."
O crack seria a próxima
etapa. "Foi devastador. Fumava 14 pedras por dia." Parou na rua. "Eu me vestia bonitinha e pedia grana dizendo ter perdido a carteira. Arrumava fácil R$ 100. Ter boa
aparência ajudava." O golpe
funcionou até o crack deixar
marcas. "Fiquei feia, com
olheiras enormes."
Sem-teto e distante de todos, começou a cair a ficha.
"Vou ficar morando em albergue, sem nada, com infeção intestinal?" A moça fina
vira prostituta. "Não me
prostituía pela droga, mas
para me livrar dela." Um ano
depois, seria expulsa da boate por causa do álcool.
"A prostituição serviu para
retomar a autoestima. Eu me
arrumava para atrair clientes, mas não nasci para isso.
Não deixei me machucarem
mais." Veio a exaustão. "Não
suportava mais acordar e
dormir mal, a humilhação
para conseguir droga."
Foi difícil abrir mão da
adrenalina. "Os riscos são a
melhor parte. Preenchem o
que a droga tira. Camuflam a
burrice de tá se acabando."
E ainda tem que lidar com
crises de abstinência. "Tem
aquelas agudas, que dói a cabeça. A do crack é pior. É psicológica. Fecha a mente."
FUTURO
Maiara quer esquecer as
alucinações. "Uma vez, ajoelhada caçando pedrinhas de
crack, ouvi uma respiração
forte e uma voz: "Você não se
ajoelha nem para Deus vai se
ajoelhar pra mim?'".
Longe da loucura, diz ter
jogado fora a máscara de vítima. "A droga não tem mais o
que fazer de mim. Não tenho
mais o que saber dela."
As drogas foram sua faculdade. "Vou transformar essa
experiência em profissão para ajudar na recuperação minha e de outros. Só assim vou
me perdoar."
(ELIANE TRINDADE)
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