São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2009 |
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GILBERTO DIMENSTEIN O Rio é um caso perdido?
DESDE QUE comecei a investigar, no final da década de 1980, grupos de extermínio, tráfico de drogas e assassinato de crianças, pela primeira vez estou com a sensação de que a cidade do Rio talvez não seja um caso perdido. Em meio à enxurrada de assaltos a turistas nesta semana, os sinais dessa mudança podiam ser captados, na semana passada, pelas antenas que oferecem internet grátis ao morro Dona Marta, encravado na zona sul, onde se conseguiu, pelo menos até agora, controlar a violência comandada pelo tráfico. Levando-se em conta a extensão da pobreza e da marginalidade juvenil no Rio, combinada com a corrupção policial, aquele morro e suas antenas Wi-Fi podem parecer um detalhe. Mas talvez ali esteja se construindo um marco psicológico -um marco que foi fundamental na redução do número de assassinatos em cidades como Nova York, Los Angeles, Bogotá, Medellín e São Paulo. Se isso se confirmar, estamos diante do desenho de uma das mais importantes novidades sociais no país.
Pela localização da favela, cercada
de escolas em que estuda boa parte
da elite do Rio -e pela mistura de
prevenção com repressão na tomada do morro Dona Marta-, existe
uma chance razoável de se produzir
impacto em toda a cidade e transmitir um símbolo de que a guerra não
está perdida.
A virada da falida financeiramente
Nova York, com muitos de seus bairros parecendo praças de guerra, está
associada a uma imagem -o desenho do coração entre as palavras "I"
e "YOU". A virada de São Paulo está
ligada ao movimento de desarmamento lançado pela sociedade em
frente à Faculdade de Direito da
USP, no largo São Francisco -um
espaço ligado a campanhas do abolicionismo, da República e contra regimes ditatoriais. Bogotá destruiu
seu bairro mais violento e o transformou num parque; Medellín construiu um metrô que uniu o morro ao
resto da cidade. A reação começa
com o esgotamento emocional de
uma população acuada. Mas o esgotamento não iria longe se não houvesse um momento em que se apresenta um projeto confiável, com resultados visíveis.
O esgotamento do carioca é visível
por todos os lados, a começar pela
romaria daqueles que, inseguros,
deixam uma das cidades mais belas
(na minha opinião, a mais bonita) do
mundo na busca de um refúgio. São
Paulo, com sua feiura crônica, é uma
das beneficiárias do êxodo de talentos do Rio.
Minha sensação sobre um possível início de virada do Rio vem do fato de que, em primeiro lugar, estão
trabalhando de forma integrada três
níveis de governo. As antenas fazem
parte de uma operação que combina
policiamento comunitário com as
mais diferentes intervenções sociais, do saneamento às creches,
passando pela iluminação. A prefeitura anunciou que vai pagar uma
bolsa de R$ 500 para os policiais, cujo salário, em teoria, seria responsabilidade apenas do governador. Como apoio do Ministério da Educação, lançou-se um plano para implantar ensino em tempo integral
em 150 escolas, transformando-as
em centros comunitários, localizados em áreas conflagradas.
Gestões desse tipo têm se revelado um antídoto contra a barbárie.
Um exemplo é Medellín, cuja topografia lembra o Rio -mas a situação
era muito, mas muito pior naquela
cidade colombiana, que chegou a ter
360 assassinatos por 100 mil habitantes. Só para dar uma medida de
comparação, o índice carioca é de 37
por 100 mil. O governo de São Paulo
iniciou em Paraisópolis, onde ocorreram distúrbios, operação similar
às que se desenvolveram em Medellín e Bogotá.
Já ocorreram outras operações
semelhantes na cidade de São Paulo,
nas quais se registrou a queda rápida
dos indicadores de criminalidade.
Há uma série de fatores que acabam pesando na redução da violência, como o gradual aumento da escolaridade, especialmente do ensino
médio, a redução da gravidez precoce e a diminuição do número de jovens, além da disseminação de programas de distribuição de renda.
Não estou dizendo aqui que a situação vai necessariamente melhorar no Rio -nem, muito menos, que
vai melhorar rapidamente. A desagregação foi longe demais na cidade,
muito mais longe do que em São
Paulo. Marginais viraram heróis e
exemplo de executivo bem-sucedido para centenas de milhares de
crianças e adolescentes. Dona Marta é uma favela mínima comparada a
muitas outras na cidade. A ofensiva
só funciona se continuar por vários
anos, ampliando a tomada de territórios e sobrevivendo a diferentes
governadores e prefeitos.
Até que um dia os marginais (e os
policiais corruptos) não se sintam
impunes, de tanto verem amigos ou
conhecidos enjaulados, e não transformados em heróis para os adolescentes. Quando, e se isso vai acontecer, não sei, mas o fato é que o Rio está começando a executar uma terapia que funciona.
PS - Um relatório divulgado na semana passada pelo Movimento Todos pela Educação sobre o nível de
aprendizado dos estudantes da oitava série de escolas públicas nas capitais mostra o seguinte sobre o Rio:
80% deles não têm conhecimento
adequado em língua portuguesa;
88%, em matemática. Note que essa
é a média -nas favelas o aprendizado é muito mais baixo. Aliás, São
Paulo consegue ir pior -84% não
aprenderam português e 93%, matemática. Como enfrentar a marginalidade juvenil com essa calamidade? Coloquei os dados completos de
todas as capitais no www.dimenstein.com.br. |
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