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PASQUALE CIPRO NETO
"Neologismo"
Na semana passada, vimos
uma questão do último vestibular da Fuvest. Para resolvê-la,
o candidato precisava ter algum
conhecimento de nomenclatura
gramatical. Em palavras pobres,
o aluno tinha de saber que ortografia e sintaxe são coisas
diferentes.
No fim do texto, afirmei que, a
julgar por aquela e por outras
questões, o candidato a uma vaga
em muitas das nossas escolas superiores precisa ter domínio básico da nomenclatura gramatical.
Pois bem. O assunto me trouxe
à mente o antológico poema
"Neologismo", de Manuel Bandeira, escrito em 1947. Ei-lo: "Beijo pouco, falo menos ainda. / Mas
invento palavras / Que traduzem
a ternura mais funda / E mais cotidiana. / Inventei, por exemplo, o
verbo teadorar. / Intransitivo: /
Teadoro, Teodora."
Permita-me perguntar-lhe, caro
leitor: você entendeu o poema?
Entendeu, por exemplo, por que o
verbo "teadorar" foi grafado numa "tacada só"? E entendeu por
que esse verbo é "intransitivo"?
Vamos lá. Na escola, muitas vezes ouvimos que verbo transitivo
é "aquele que precisa de complemento" e que verbo intransitivo é
"aquele que não precisa de complemento". Em seguida, vêm as
listas de verbos e suas respectivas
"classificações": o verbo X é isto, o
verbo Y é aquilo etc.
Não é bem assim que a coisa deveria funcionar. Seria bom ver os
verbos na frase, no texto, no contexto. Também seria desejável
lembrar que, fora do contexto,
nada é nada. Mas o mais importante talvez fosse começar pelo
começo (com perdão pela redundância), ou seja, por explicar por
que o verbo transitivo se chama
transitivo e por que o intransitivo
se chama intransitivo.
Que tal lembrar que "transitivo", "transitar", "trânsito", entre
outras, são palavras cognatas, ou
seja, têm raiz comum? Por trás de
toda a família está o verbo latino
"transire", cujo significado parece
óbvio: "ir além de".
Se A adora B, por exemplo, a
adoração de A passa, ou seja,
transita, sai de A e tem B por objeto, isto é, por alvo. Dizemos, então, que, em "A adora B", o verbo
"adorar" é transitivo e, consequentemente, B é o objeto, o alvo
dessa adoração. Não é à toa que a
gramática chama B de objeto (direto, nesse caso). Em outras palavras, B é o complemento, o fim do
percurso da adoração (que sai de
A e transita até B).
Em "B dorme muito", o ato de B
("dormir") não transita, não sai
de B, não tem ninguém ou nada
por objeto, por alvo. Dizemos, então, que, em "B dorme muito",
"dormir" é verbo intransitivo.
Ao "inventar" a palavra "teadorar", nosso grande poeta inclui
nesse verbo o objeto (o alvo) da
adoração, daí uma das razões da
"intransitividade" de "teadorar".
O verbo é "intransitivo" porque já
contém seu suposto objeto. Genial, não? Viva Bandeira!
E por que eu disse "uma das razões"? Porque outra delas talvez
seja o fato de que, sendo intransitiva, a adoração não se materializa, fica presa, contida, fechada no
interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao
ser adorado. Não custa lembrar
que, em "Beijo pouco, falo menos
ainda", o próprio poeta dá uma
"pista" dessa "intransitividade"
de seus sentimentos. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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