São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2006

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GUERRA URBANA

Jovens dessas áreas de SP não vangloriam PCC, mas comemoraram atentados contra as forças que impõem medo a eles

Facção é glamourizada até os 16 anos, quando morador corre o risco de ser obrigado a pagar taxa ou a virar uma espécie de homem-bomba

Na periferia, ataque à polícia é celebrado

IVAN FINOTTI
EDITOR DO FOLHATEEN

Como acontece todo dia naquela ONG da zona sul de São Paulo, eram quase 8h de terça-feira quando cerca de 600 adolescentes e crianças de 7 a 15 anos começaram a chegar.
Ali, eles participam de aulas complementares às da escola e desenvolvem atividades relacionadas a artes e esportes.
Na terça-feira passada, no entanto, um dia depois da cobertura intensa dos jornais e das televisões sobre o conflito que havia deixado quase 60 mortos no fim de semana, um daqueles adolescentes teve idéias. Na porta da organização não-governamental, puxou a parte de trás de sua camiseta por cima da cabeça e levantou a parte da frente sobre o nariz. Deixando apenas os olhos à mostra, concluiu: "É PCC!".
Em poucos minutos, todos os 600, meninas e mocinhas incluídas, imitavam o gesto que o rapaz havia imitado da televisão. Aos berros, 1.200 olhinhos reproduziam notícias ("É o pânico! Todo mundo se fechou em casa"), elegiam um vencedor ("O partido ganhou a guerra!") e planejavam o futuro ("Vou ser do PCC").
A tropa só aceitou tirar as camisetas da cara quando a presidente da ONG argumentou que nunca na vida tinha se escondido atrás de máscaras, seja lá qual fosse a dificuldade por que estivesse passando.
"É claro que existe uma glamourização. Esses jovens são muito ingênuos, e o PCC mostra que tem o poder, que manda, que ninguém passa por cima deles", diz a educadora.
Essa glamourização, entretanto, tende a mudar quando o jovem chega aos 16 ou 17 anos. Em vez de admirar o PCC, passa a temê-lo. Isso porque a maioria se dá conta de que a realidade envolve pagar R$ 500 todo mês ou se tornar uma espécie de homem-bomba, disponível para realizar ataques suicidas ou para assumir crimes que não cometeu.
"O PCC não ajuda ninguém, não ajuda a comunidade. O PCC só ajuda a eles mesmos", diz Antônio, um rapaz de 23 anos envolvido na produção de documentários de cinema que mostrem a realidade da zona sul. "Aqui, todo garoto de sete ou oito anos quer ser ladrão na hora de brincar de polícia-e-ladrão. Mas, quando chega aos 16 ou 17 anos, começa a perceber a realidade. Eu tenho um irmão preso porque escolheu esse caminho." Seu irmão tem 21 anos e está na cadeia por homicídio e porte ilegal de armas.

Nem PCC nem PM
Antônio é nome fictício, assim como os outros desta reportagem, porque, segundo eles: "Se a gente fala mal do PCC, é morte na certa. Se a gente fala mal da polícia, eles vêm atrás e descem porrada".
E aqui entra a segunda parede que prensa a juventude na periferia paulistana: a força policial. É fácil confundir o ódio aos homens fardados com a glamourização ao crime, mas são coisas diferentes.
Não, os jovens da periferia não apóiam o PCC. Mas de certa forma se sentiram vingados quando souberam dos ataques à polícia. No final das contas, eles morrem de medo de um. E do outro também.
É nessa corda bamba com tiros vindos dos dois lados que os jovens têm que se equilibrar. "O melhor era que não existisse nenhum deles", afirma Antônio. Fábio, de 16 anos, também morador da zona sul paulistana, não anda à noite em seu próprio bairro.
"Quando eu volto da balada no centro, chego ao terminal de ônibus no meio da madrugada e fico lá esperando clarear. Não é por causa dos traficantes. Esses conservam a gente. Mas se a polícia pega você de noite nessas quebradas, zoa pra caramba. Dão tapa, humilham. Só que, nesta semana, eles estão com desculpa para matar."
Seu amigo João, de 18 anos, confirma que o medo maior ali é da polícia. "Tem uns PMs que não respeitam nada. Plantam droga se você já tiver passagem na Justiça e exigem R$ 5.000 em dez minutos pra te liberar. Se andar em grupo, então, eles não perdoam. Os policiais passaram pelas ruas avisando isso", conta ele.
Mas João também vê o outro lado da moeda. "Na minha opinião, muitos policiais estão trabalhando. É lógico que tem safadão no meio, tem corrupto. Mas alguns deixam família em casa para ir atrás do ganha-pão e acabam morrendo na mão dos malucos aí."
O toque de recolher que a juventude se impôs na região começa às 21h. Depois disso, somente com muita cautela, conforme fez o estudante de enfermagem José, 20.
"O governador diz que não tem toque de recolher, mas isso é para quem mora em um lugar seguro. Não tive coragem de ir à aula de noite na segunda nem na terça por causa da polícia. Quem é do PCC não está nem tirando o nariz pra fora de casa. Ontem [quarta-feira], fiquei na casa da minha namorada até a 1h. Voltei pra casa correndo e me escondendo a cada esquina", descreve o jovem.

Polícia honesta
"Eu sei que tem polícia honesta porque já tomei um monte de enquadro. Uns 15 ao todo", diz o rapaz. "Só com minha namorada junto, nesses últimos dois anos, já passamos por quatro ou cinco. Eles perguntam se você tem passagem, checam a identidade via rádio e liberam. Mas outro dia jogaram dois amigos meus dentro do córrego. Pura maldade."
Kátia, sua colega do curso de enfermagem, tem 20 anos e compõe raps. Já fez uma série deles, sempre retratando "a realidade da periferia e a vontade de melhorar o sistema". Na última semana, ela escreveu, apenas com palavras iniciadas com a letra F, uma canção sobre o que está vendo ao seu redor. Segue um trecho:
"Fardado folgado/
Feriu Francisco, furo fatal/
Fardado formulou fatos falsos, fisgou fama, ficou falado/
Francisco faleceu, flores frente funeral".

Zona leste
Do outro lado da cidade, na zona leste, a situação se repete. O toque de recolher ocorre devido à polícia e não aos criminosos, garante o fanzineiro e escritor Sérgio, 33.
"Meu amigo, entendo perfeitamente que o morador de Moema [bairro nobre da zona sul paulistana] fique tranqüilo e se sinta seguro quando vê um carro de polícia na esquina. Mas eu não. Aqui, somente quem é muito alienado pode sentir um reflexo de segurança com a polícia. É de anos que existe um despreparo e uma abordagem dura e violenta com os pobres. Se for negro, então... Vi oito forças-táticas ali no centro do bairro e hoje não saio de casa de jeito nenhum."
Ele -que mora em uma região que supostamente é dominada pela facção- afirma que jamais ouviu alguém na rua se referir positivamente à organização criminosa. "Nunca vi alguém dizendo algo como "Que bom ter o PCC aqui". As pessoas só falam do PCC com medo, sem se vangloriar. O PCC não é bom nem pra eles, que acabam endividados e são obrigados a fazer coisas como atacar a polícia. O que é uma burrice, já que é uma instituição constituída na qual mexer com um significa mexer com todos."
Na situação confusa da periferia, entre os mortos e os feridos, o conflito já vai virando tema de piada de boteco. Sérgio ouviu uma delas um dia desses: "Fui comprar pão ao lado da delegacia aqui do bairro. Os policiais estavam todos fechados no DP, e o povo estava dizendo que era porque eles tinham alugado um DVD. Que filme? "Todo Mundo em Pânico'".


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