São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

A tragédia anunciada do cotonete


A relação entre saúde e educação é mais óbvia do que a ausência de ranhuras na pista de Congonhas

UM DOS MOTIVOS DA dificuladade de aprendizado de crianças e adolescentes é a baixa audição provocada pela cera acumulada no ouvido. Apenas um cotonete faria um milagre: devolveria-lhes a audição. Essa descoberta foi feita pelo professor de otorrinolaringologia da USP (Universidade de São Paulo) Ricardo Bento depois de realizar, em várias regiões do país, mutirões de saúde.
Estima-se que 18% da população brasileira sofra de problemas auditivos, causados, em parte, pela falta de hábitos rudimentares de higiene.
Para centenas de milhares de crianças e adolescentes, esse detalhe significa não conseguir ouvir direito (ou nem ouvir) o professor.
O milagre do cotonete mostra como o cotidiano brasileiro é feito das mais diferentes modalidades de tragédias anunciadas. Quando a discussão sobre as irresponsabilidades públicas e privadas atinge as elites, como o caso das mortes em Congonhas, vemos um enorme barulho -o que, obviamente, é o certo. Para as tragédias anunciadas dos mais pobres, o barulho é bem menor, revelando uma surdez.

 

O milagre do cotonete integra uma tragédia anunciadíssima. Milhões de brasileiros (sem nenhum exagero) vão mal na escola simplesmente porque não cuidam de questões elementares de saúde. Assim, afastam-se da chance de um emprego e aproximam-se da marginalidade.
O clínico-geral Zyun Massuda convidou um grupo de médicos, orientados pela professora da USP Mileni Ursich, a fazer um mutirão de saúde numa escola estadual (Alves Cruz) num bairro de classe média da cidade de São Paulo - Zyun estudou ali nos tempos em que a escola pública conseguia colocar alunos numa disputada faculdade de medicina. "É espantoso", afirma a professora Mileni, especialista em endocrinologia, ao conhecer os resultados dos exames.
Cerca de 15% dos estudantes enxergavam mal - uma estatística que, aliás, se reproduz em todo o país.
 

A equipe comandada por Mileni detectou baixa taxa de glicemia numa expressiva quantidade de alunos.
Traduzindo: eles estavam em jejum prolongado. Traduzindo ainda mais: extrema dificuldade de concentração devido à fome.
O que mais chamou a atenção da equipe foram os 25% dos estudantes que nunca tinham feito um exame médico. "Se tivéssemos aplicado outros exames, encontraríamos mais doenças", aposta Zyun. Está certo.
Venho coletando exames de saúde em escolas. Indicam alta incidência de anemia provocada pela falta de ferro (mais um fator que impede a concentração), além de cárie, verminoses e rinite alérgica, sem contar os distúrbios psicológicos como a dislexia. Tais dados levam o ministro da Educação, Fernando Haddad, a afirmar que, sem cuidar da saúde dos estudantes, os esforços de melhoria do ensino estarão comprometidos.
Tente, caro leitor, tirar os óculos e ler esta coluna apenas para sentir o tamanho dessa tragédia anunciada -e, para completar, com um dente doendo. Converta, agora, o incômodo em números. Levando em conta que temos cerca de 53 milhões de alunos em escolas públicas e que as deficiências de saúde que dificultam o aprendizado podem atingir pelo menos 40% deles, estamos falando aqui de algo como 21 milhões de estudantes vítimas dessa tragédia anunciada.
 

O professor tem dificuldade de ensinar, muitas vezes, porque padece de problemas de saúde física e mental, não tratados corretamente. Tudo isso ajuda a explicar o absenteísmo e o desânimo dos professores, duas pragas da educação pública.
Para muitos médicos e psicólogos, nada disso que estou escrevendo é novidade. Não é novidade nem mesmo para professores. Na lógica da tragédia anunciada, a relação entre saúde e educação é mais óbvia do que a ausência de ranhuras na pista de Congonhas, mas não é debatida nem gera comoção.
 

Presenciamos todos os dias tragédias provocadas pela combinação de irresponsabilidade com ignorância. Só no trânsito morrem, por ano, 35 mil pessoas -194 vezes o número de vítimas do desastre de Congonhas-, sem contar os homicídios. Uma boa parte disso deve-se ao abuso do álcool: mesmo assim, não se consegue limitar a publicidade de cerveja.
É como se faltasse um cotonete para melhorar a audição de todo um país e precisássemos de gritos como os dos familiares dos mortos de Congonhas para ouvir.
 

PS - Se Lula tirar do papel o projeto federal de saúde da escola, cujo lançamento está previsto para este ano, fará mais pelo aprendizado do que todo o Bolsa-Família -é exatamente o que acontecerá se o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, cumprir sua promessa de criar uma rede de centros de saúde, com ambulatórios móveis, apenas para detectar doenças nos alunos. Na lógica da tragédia anunciada, quase ninguém pressiona (nem pais nem alunos nem professores) para que programas tão vitais sejam desenvolvidos.

gdimen@uol.com.br

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