São Paulo, quinta-feira, 22 de setembro de 2011

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PASQUALE CIPRO NETO

'Sou um mulato nato no sentido...'


Alguém acha mesmo que nos dias de hoje alguém 'embranqueceria' Machado por preconceito racial?

E NÃO É QUE o pessoal da agência que trabalha para a Caixa Econômica Federal fez Machado de Assis "embranquecer"? Confesso que não tinha visto a peça publicitária, ou seja, fiquei sabendo de tudo de uma vez (da retirada do filme, pela CEF, e do filme em si, disponível no UOL). Vi também o comunicado da CEF, em que a instituição financeira explica por que tirou o filme do ar.
A primeira coisa que me veio à mente quando vi a notícia foi a antológica canção "Sugar Cane Fields Forever", do não menos antológico disco "Araçá Azul", de Caetano Veloso (de 1972 -o primeiro pós-Londres). Na canção, registrada como de Caetano Veloso e do poeta maranhense Joaquim de Sousa Andrade, o genial e revolucionário Sousândrade (1833-1902), Caetano repete à exaustão estes versos: "Sou um mulato nato / No sentido lato / Mulato democrático do litoral".
Em 2008, no dia em que Barack Obama foi indicado candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Caetano Veloso fez um show, em que entoou os versos que citei de "Sugar Cane" e fez um pronunciamento sobre Obama, sobre as palavras "mulato" e "negro" etc. Nesse pronunciamento, Caetano fez diversas considerações interessantes. Numa delas, cita o cineasta Joel Zito e o que ele diz sobre o uso das palavras "mulato" e "negro" (recomendo ao leitor o vídeo desse show, que está disponível no YouTube).
Bem, o fato é que a questão da peça publicitária da CEF trouxe à tona, mais uma vez, a discussão (às vezes exagerada) sobre questões raciais e sobre o uso de certas palavras. Já li e ouvi gente dizendo que a peça publicitária da CEF é racista etc. Cá entre nós, caro leitor: em sã consciência, alguém acha mesmo que nos dias de hoje alguém "embranqueceria" Machado de Assis na TV por preconceito racial? Nem o mais ardoroso e idiota adepto da Ku Klux Klan teria a "brilhante" ideia de "embranquecer" o grande Machado. Será que o problema não é outro? Será que o problema não se chama pura e simplesmente desinformação? Ou, para quem não gosta de eufemismos, ignorância?
Parece mais um dos típicos casos do grande mal dos dias de hoje: a dura tarefa de transformar informação em conhecimento e/ou a dura tarefa de duvidar, de questionar, de ter coragem de dizer que o rei está nu. Ninguenzinho das trocentas pessoas que viram o filme antes que ele fosse posto no ar desconfiou que... Deus meu! Que falta faz uma criança! (Refiro-me ao conto "A Roupa Nova do Rei", do dinamarquês Hans Christian Andersen.)
Convém lembrar que o "Houaiss" dá esta origem da palavra "mulato": "Do espanhol mulato ('macho jovem'), por comparação da geração híbrida do mulato com a do mulo, de mulo ('macho')". Não é difícil entender a resistência de muitos ao emprego desse vocábulo.
Posto (tudo) isso, chego ao ponto, ou melhor, retomo o ponto da última coluna, em que abordei o texto-aula de Tostão (14/9), a partir do qual esbocei uma espécie de planejamento de uma possível aula de língua, texto, literatura. Recebi inúmeras mensagens de profissionais da educação, muitos dos quais disseram que levariam o meu texto para a sala de aula. Agradeço-lhes pela honra e ofereço-lhes mais uma peça (a coluna de hoje), com a qual ouso sugerir (mais uma vez) que um fato relevante, momentoso vire objeto de discussão e, sobretudo, de intertextualidade. E que a discussão seja sensata, pelo amor de Deus. Já chega da bobajada do politicamente (in)correto. É isso.

inculta@uol.com.br


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