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MOACYR SCLIAR
A vida atrás da porta
Aluno de castigo é esquecido atrás de
porta. O menino também costuma receber castigos em casa. A mãe diz que
o filho só sai do castigo quando ela
manda. Cotidiano, 17.nov.2004
A dulto, ele lembrava os
castigos que recebera na infância e deles falava com revolta:
uma vez até me esqueceram atrás
da porta, contava aos amigos. Mas
tantas vezes o fez que eles acabaram cansando daquelas histórias.
Está bem, diziam-lhe, você foi
castigado, você ficou traumatizado, mas isso agora é coisa do passado; esqueça, vá viver sua vida,
você não é mais um menininho
magoado, você é um homem sério,
um empresário bem-sucedido. Por
fim constrangido, ele decidiu não
mais falar sobre o assunto, para
não ficar com a fama de chato.
Mas então descobriu, para sua
surpresa, que sentia certa saudade
das punições. Por quê? Por que já
eram parte de sua vida? Porque
lhe faziam recordar os tempos de
criança? Talvez. O certo é que a
lembrança o perseguia com tanta
intensidade que começou a fazer
uma coisa estranha: volta e meia,
em casa, colocava-se atrás de uma
porta e ali ficava, quieto, às vezes
por horas a fio.
No começo a esposa, mulher tolerante, achava graça do que chamava de encenação. Mas quando
notou que a o marido levava aquilo a sério, aborreceu-se: isto é maluquice, disse, essa coisa já foi longe demais, agora chega. Brigaram,
acabaram se separando.
Sozinho no grande apartamento, sem ninguém para censurá-lo,
passava cada vez mais tempo
atrás da porta. Ficava olhando a
maçaneta, os veios da madeira. Os
amigos, preocupados, faziam o
possível para tirá-lo de casa. Um
deles apresentou-o à irmã, bela
moça. Deu resultado: apaixonaram-se, casaram, estão morando
no mesmo luxuoso apartamento.
Mas, tendo aprendido a lição,
ele não fica mais atrás da porta.
Em primeiro lugar porque não
quer brigar com a nova esposa que
é, como repete constantemente, a
luz de seus olhos. Mas há um outro, e importante, motivo: ele descobriu que as portas do apartamento, ou as de seu escritório, ou
quaisquer outras portas não têm
qualquer significado para ele. A
porta verdadeira, a porta capaz de
lhe trazer de volta o passado, é a
da escola. Homem decidido, empreendedor, já sabe o que fazer:
contratará um marginal para, à
noite, ir até a escola (que continua
no mesmo lugar) e roubar a porta.
Que ele manterá oculta numa sala
alugada especialmente para
este fim.
Sempre que se sentir angustiado
irá até lá e ficará atrás da porta de
sua infância, imóvel, quietinho. E
então, com algum esforço e alguma sorte, poderá até ouvir a voz
da professora enumerando os
afluentes do Amazonas.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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