São Paulo, segunda-feira, 22 de novembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

A vida atrás da porta

 Aluno de castigo é esquecido atrás de porta. O menino também costuma receber castigos em casa. A mãe diz que o filho só sai do castigo quando ela manda. Cotidiano, 17.nov.2004

A dulto, ele lembrava os castigos que recebera na infância e deles falava com revolta: uma vez até me esqueceram atrás da porta, contava aos amigos. Mas tantas vezes o fez que eles acabaram cansando daquelas histórias.
Está bem, diziam-lhe, você foi castigado, você ficou traumatizado, mas isso agora é coisa do passado; esqueça, vá viver sua vida, você não é mais um menininho magoado, você é um homem sério, um empresário bem-sucedido. Por fim constrangido, ele decidiu não mais falar sobre o assunto, para não ficar com a fama de chato. Mas então descobriu, para sua surpresa, que sentia certa saudade das punições. Por quê? Por que já eram parte de sua vida? Porque lhe faziam recordar os tempos de criança? Talvez. O certo é que a lembrança o perseguia com tanta intensidade que começou a fazer uma coisa estranha: volta e meia, em casa, colocava-se atrás de uma porta e ali ficava, quieto, às vezes por horas a fio.
No começo a esposa, mulher tolerante, achava graça do que chamava de encenação. Mas quando notou que a o marido levava aquilo a sério, aborreceu-se: isto é maluquice, disse, essa coisa já foi longe demais, agora chega. Brigaram, acabaram se separando.
Sozinho no grande apartamento, sem ninguém para censurá-lo, passava cada vez mais tempo atrás da porta. Ficava olhando a maçaneta, os veios da madeira. Os amigos, preocupados, faziam o possível para tirá-lo de casa. Um deles apresentou-o à irmã, bela moça. Deu resultado: apaixonaram-se, casaram, estão morando no mesmo luxuoso apartamento.
Mas, tendo aprendido a lição, ele não fica mais atrás da porta. Em primeiro lugar porque não quer brigar com a nova esposa que é, como repete constantemente, a luz de seus olhos. Mas há um outro, e importante, motivo: ele descobriu que as portas do apartamento, ou as de seu escritório, ou quaisquer outras portas não têm qualquer significado para ele. A porta verdadeira, a porta capaz de lhe trazer de volta o passado, é a da escola. Homem decidido, empreendedor, já sabe o que fazer: contratará um marginal para, à noite, ir até a escola (que continua no mesmo lugar) e roubar a porta. Que ele manterá oculta numa sala alugada especialmente para este fim.
Sempre que se sentir angustiado irá até lá e ficará atrás da porta de sua infância, imóvel, quietinho. E então, com algum esforço e alguma sorte, poderá até ouvir a voz da professora enumerando os afluentes do Amazonas.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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