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Analfabetos que já frequentaram escola criam esquemas para realizar atividades, mas precisam de ajuda de quem sabe ler
"Conheço os ônibus pela cor", diz garçom
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SALVADOR
Com vergonha de perguntar os
itinerários dos ônibus para outras
pessoas, o garçom Juvenal Gonçalves, 51, sempre carrega em sua
carteira uma tabela com as cores
dos veículos que precisa tomar
para viajar ou fazer outras atividades. "Conheço os ônibus pela cor
e pelos números", disse o garçom,
que trabalha em uma barraca em
Entre Rios (134 km de Salvador).
Quando está em outra cidade,
Gonçalves não tem outra alternativa a não ser perguntar.
Apesar de ter frequentado uma
escola pública até a segunda série
do ensino fundamental, Gonçalves não sabe ler. "Faz quase 30
anos que deixei de estudar. Vi que
não aprendia nada e simplesmente larguei a escola", disse o garçom, que também usa as cores para identificar os rótulos das bebidas que serve aos seus clientes.
Há pouco mais de um ano,
Gonçalves ingressou em um curso de alfabetização para adultos.
Depois de seis meses, desistiu. "O
meu juízo é muito quente. Não
aprendia nada e achei que estava
perdendo tempo na sala de aula."
Mesmo trabalhando em uma
profissão que exige constantes
anotações, Juvenal Gonçalves
criou um método alternativo para
não esquecer os pedidos dos
clientes. "Já decorei a ordem da
lista do cardápio. Após cada pedido, faço um traço ao lado da descrição. Depois, é só contar e cobrar o cliente."
Apesar de ser analfabeto, Juvenal Gonçalves disse que "nunca
foi passado para trás" quando o
assunto é dinheiro. "Faço contas
rapidamente, sei dar o troco e
nunca me enganei."
Para fazer compras, Gonçalves
também costuma pedir ajuda para os filhos ou funcionários dos
estabelecimentos. Os seis filhos
do garçom são alfabetizados. "Minha filha mais velha é professora.
Não quis que os meus filhos passassem pelas mesmas dificuldades que encontrei."
Sempre sorrindo, o garçom disse que perdeu muitas oportunidades por não saber ler e escrever.
"Pode estar o sol mais lindo do
mundo, mas à minha frente só vejo escuridão. Tanto faz letra pequena ou grande, faixa pequena
ou grande, não entendo nada."
Ajuda da filha
A empregada doméstica Ana da
Paixão Flor, 34, também usa uma
tabela com números e cores para
pegar ônibus. Apesar de ter frequentado uma escola pública até
a quarta série do ensino fundamental, a doméstica não sabe ler.
"Faz mais de 15 anos que deixei
de estudar. No interior, as mães
não mandam os filhos para a escola. O que elas querem é que a
gente trabalhe", acrescentou.
Grávida de seis meses, a empregada doméstica também disse
que encontra muitas dificuldades
para fazer pequenas operações
matemáticas. "Não gosto muito
de fazer compras. Às vezes, eu me
atrapalho com os preços dos produtos", disse. Ana Flor disse que
não anota os recados encaminhados para os seus patrões. "Com o
tempo, aprendi a decorar as mensagens. Guardo tudo na minha
memória e digo quem ligou quando eles chegam", ressaltou.
A primeira filha da empregada
doméstica, E.R., 8, também é
"usada" quando a mãe quando
precisa fazer alguma coisa relacionada à leitura. "Minha filha vai
comigo para supermercados, farmácias, padarias e outros estabelecimentos comerciais. Ela sabe
ler e escrever muito bem."
Ana Flor disse que se arrepende
de ter parado de estudar. "Eu sei
que perdi muitas oportunidades
na vida. Agora, acho que é tarde.
Não tenho mais tempo para frequentar novamente uma escola e
começar tudo de novo."
(LF)
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