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São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

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Analfabetos que já frequentaram escola criam esquemas para realizar atividades, mas precisam de ajuda de quem sabe ler

"Conheço os ônibus pela cor", diz garçom

DA AGÊNCIA FOLHA, EM SALVADOR

Com vergonha de perguntar os itinerários dos ônibus para outras pessoas, o garçom Juvenal Gonçalves, 51, sempre carrega em sua carteira uma tabela com as cores dos veículos que precisa tomar para viajar ou fazer outras atividades. "Conheço os ônibus pela cor e pelos números", disse o garçom, que trabalha em uma barraca em Entre Rios (134 km de Salvador).
Quando está em outra cidade, Gonçalves não tem outra alternativa a não ser perguntar.
Apesar de ter frequentado uma escola pública até a segunda série do ensino fundamental, Gonçalves não sabe ler. "Faz quase 30 anos que deixei de estudar. Vi que não aprendia nada e simplesmente larguei a escola", disse o garçom, que também usa as cores para identificar os rótulos das bebidas que serve aos seus clientes.
Há pouco mais de um ano, Gonçalves ingressou em um curso de alfabetização para adultos. Depois de seis meses, desistiu. "O meu juízo é muito quente. Não aprendia nada e achei que estava perdendo tempo na sala de aula."
Mesmo trabalhando em uma profissão que exige constantes anotações, Juvenal Gonçalves criou um método alternativo para não esquecer os pedidos dos clientes. "Já decorei a ordem da lista do cardápio. Após cada pedido, faço um traço ao lado da descrição. Depois, é só contar e cobrar o cliente."
Apesar de ser analfabeto, Juvenal Gonçalves disse que "nunca foi passado para trás" quando o assunto é dinheiro. "Faço contas rapidamente, sei dar o troco e nunca me enganei."
Para fazer compras, Gonçalves também costuma pedir ajuda para os filhos ou funcionários dos estabelecimentos. Os seis filhos do garçom são alfabetizados. "Minha filha mais velha é professora. Não quis que os meus filhos passassem pelas mesmas dificuldades que encontrei."
Sempre sorrindo, o garçom disse que perdeu muitas oportunidades por não saber ler e escrever. "Pode estar o sol mais lindo do mundo, mas à minha frente só vejo escuridão. Tanto faz letra pequena ou grande, faixa pequena ou grande, não entendo nada."

Ajuda da filha
A empregada doméstica Ana da Paixão Flor, 34, também usa uma tabela com números e cores para pegar ônibus. Apesar de ter frequentado uma escola pública até a quarta série do ensino fundamental, a doméstica não sabe ler.
"Faz mais de 15 anos que deixei de estudar. No interior, as mães não mandam os filhos para a escola. O que elas querem é que a gente trabalhe", acrescentou.
Grávida de seis meses, a empregada doméstica também disse que encontra muitas dificuldades para fazer pequenas operações matemáticas. "Não gosto muito de fazer compras. Às vezes, eu me atrapalho com os preços dos produtos", disse. Ana Flor disse que não anota os recados encaminhados para os seus patrões. "Com o tempo, aprendi a decorar as mensagens. Guardo tudo na minha memória e digo quem ligou quando eles chegam", ressaltou.
A primeira filha da empregada doméstica, E.R., 8, também é "usada" quando a mãe quando precisa fazer alguma coisa relacionada à leitura. "Minha filha vai comigo para supermercados, farmácias, padarias e outros estabelecimentos comerciais. Ela sabe ler e escrever muito bem."
Ana Flor disse que se arrepende de ter parado de estudar. "Eu sei que perdi muitas oportunidades na vida. Agora, acho que é tarde. Não tenho mais tempo para frequentar novamente uma escola e começar tudo de novo." (LF)


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