São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

Carne levare

"A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião", escreveu Caetano Veloso no início da letra de "Um Frevo Novo", uma de suas belas composições carnavalescas. A frase tem por inspiração um excerto do grande poeta baiano Castro Alves: "A praça! / A praça é do povo / como o céu é do condor". Na letra de "Um Frevo Novo", Caetano sugere que Carnaval é na praça ("Todo mundo na praça / Manda a gente sem graça pro salão").
E de onde vem a palavra "carnaval"? De acordo com o dicionário "Houaiss", vem da expressão latina "carne levare", que significa "tirar, sustar, afastar a carne". O Carnaval seria o período em que começa a Quaresma, em que se impõe (ou impunha) a abstenção de carne na alimentação.
Isso me lembra um texto de "A Semana", de Machado de Assis, que começa assim: "Quando os jornais anunciaram para o dia 1º deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento aos céus. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.
Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz a gente esquecer que come um pedaço do animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele".
Em se tratando de Carnaval (se me permitem uma pequena maledicência), a discussão hoje não é sobre a abstenção ou não de carne durante a Quaresma. Parece que da abstenção de carne animal na alimentação humana se passou a um empanturramento de carne humana, banalmente exposta (à saciedade) nos bailes "sem graça" dos salões.
Mas voltemos ao antológico texto de Machado, que, como se vê, propõe uma profunda reflexão sobre as eternas questões razão x cultura, razão x educação, razão x religião. A razão sugere o vegetarismo, diz-se no texto ("Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo"), mas a educação impõe a carne ("Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne"). O resultado desse embate? Ei-lo: "Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha".
Não lhe parece, caro leitor, que o texto de Machado tem plena relação com muitas das questões que inquietam a humanidade hoje e, particularmente, com a lama que assola o país (que -dizem nossos próceres- é cultural)? Lembro apenas que, ao tentar explicar o caixa dois do partido dele, o presidente da República afirmou que "todo mundo faz". Recorramos ao grande Machado de Assis, mais uma vez: "Certo. A arte disfarça a hediondez da matéria". E viva Machado! É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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