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ENTREVISTA
FERNANDO PAMPLONA
Comercialização fez o Carnaval virar Broadway
Para ex-carnavalesco, patrocínios tiraram espontaneidade dos desfiles
ESCOLHIDO JURADO do desfile de 1959 por
ser professor da Escola Nacional de Belas
Artes, Fernando Pamplona viu a Acadêmicos do Salgueiro apresentar "Viagem Pitoresca Através do Brasil - Debret". Virou salgueirense
imediatamente. "Todas as escolas vinham de uniforme, capa-e-espada, chapéu de Napoleão, falando de
"Brasil, panteão de glórias". Quando vi o Salgueiro com
um nome de artista, achei uma evolução fabulosa."
No ano seguinte, já era campeão com "Quilombo
dos Palmares" e dava um novo significado à palavra
"carnavalesco": a pessoa que cria o enredo e o desenvolve, pautando todo o trabalho da escola.
Após largar a função, em 1978, tornou-se crítico agudo da comercialização dos desfiles, dos quais garante
não ser, há cinco anos, sequer telespectador. "Transformaram num espetáculo comercial da Broadway."
Pamplona, 82, faz suas críticas com mais sarcasmo
do que ranço. É nesse tom que afirma não ter se interessado pela homenagem que a Unidos de Vila Isabel
faria a ele, na noite passada, em seu enredo sobre o
Teatro Municipal carioca -onde trabalhou. Seu Carnaval agora, diz, é na casa da filha, na região serrana do
Rio, com a TV desligada.
(LUIZ FERNANDO VIANA, da Sucursal do Rio)
FOLHA - Por que o sr. se afastou do
Carnaval?
FERNANDO PAMPLONA - O saco encheu. Em primeiro lugar, parei
de fazer [desfiles de] escolas de
samba porque era muito complicado. Foi em 1978. Depois eu
continuei no [júri do prêmio]
Estandarte de Ouro, do "Globo", e na TV Manchete. Mas a
Manchete estava, dois anos antes de falir [a TV saiu do ar em
1999], pendurada nas imagens
da Globo, e a Globo não estava
transmitindo direito. Pegava o
meio da Portela, ia para o princípio, do princípio para o fim, a
gente dizendo uma coisa e a
imagem mostrando outra... Então, denunciei isso no ar. E os
caras da Globo exigiram que eu
me desculpasse. Eu, em vez de
me desculpar, me demiti no ar.
No Estandarte fiquei um
pouco mais.
FOLHA - Desde então, o sr. passa o
Carnaval em Itaipava [região serrana do Rio]?
PAMPLONA - Na serra, sempre.
E procurando nem ligar a TV.
FOLHA - Por quê?
PAMPLONA - Primeiro, porque
até o barracão já me enjoava.
Hoje é tudo maravilhoso, as facilidades são grandes. Mas, no
meu tempo, a gente só trabalhava embaixo da ponte de São
Cristóvão [zona norte], não havia dinheiro. Eu não sabia se as
coisas iam ficar prontas, era
muito agoniante. E, depois,
houve uma transformação nas
escolas que não me agradou.
FOLHA - O que não agradou?
PAMPLONA - A comercialização.
Começaram a comprar porta-bandeira, mestre-sala, pagar
por mês. Começou a comercialização, principalmente, do
samba-enredo. E veio a história
dos patrocínios. O próprio carnavalesco perdeu a liberdade. A
não ser a Rosinha [Rosa Magalhães, da Imperatriz Leopoldinense], que é ultrainteligente e,
quando Campos [cidade do
norte fluminense] pagou para
fazer um enredo [em 2002], ela
saiu com a antropofagia dos
Goytacazes e foi para a Semana
de Arte Moderna. Ela consegue
driblar essa artificialidade.
O próprio João [Joãosinho
Trinta], no último Carnaval
que fez [em 2003, pela Grande
Rio], tinha a Vale até no título
["O Nosso Brasil que Vale"].
Descobriram que é um veículo de comunicação que rende
mais do que comprar página de
jornal e revista. Então está todo
mundo em cima, principalmente os Estados. Por R$ 3 milhões você faz uma publicidade
para 40 milhões de pessoas. As
escolas de samba não sabem
cobrar. Era para cobrar, no mínimo, R$ 10 milhões.
FOLHA - Mas, sem patrocínios e essa comercialização, não seria difícil
que o Carnaval crescesse e surgisse,
por exemplo, a Cidade do Samba?
PAMPLONA - A Cidade do Samba
é uma coisa maravilhosa. Mas
acho que quem organiza o desfile resolveu acelerar muito o
andamento da música. Com ele
acelerado, perdeu-se a ginga, a
síncope, o balanço. Hoje, 90%
das escolas desfilam com marchinhas, inclusive a minha. O
Salgueiro, há muito tempo, só
tem marchinhas. Quem se salvava era a Beija-Flor, que vinha
com samba, e a Unidos da Tijuca. Neste ano, elas embarcaram
na marchinha também. A que
está melhorzinha é a Grande
Rio. O Salgueiro já ganhou um
Carnaval com uma marchinha
muito bonita: "Explode coração..." ["Peguei um Ita no Norte", em 1993]. Não é que a marcha seja feia. Mas não é samba.
FOLHA - Então, o sr. continua ouvindo os sambas-enredo?
PAMPLONA - Você liga a televisão nesta época e está passando
Carnaval. Não há como fugir.
FOLHA - O que, surgido nessa era
de comercialização, foi positivo?
PAMPLONA - Acho que foi só negativo. Perdeu a espontaneidade, a naturalidade. Anos atrás,
uma grande personalidade me
ligou: "Fernando, estamos convidando você para ver um desfile de protótis". Eu disse: "O que
é protótis?". "É o modelo que a
gente desfila." Eram protótipos. Aí você faz um desfile com
modelos antes do Carnaval,
com as fantasias todas prontas,
industrializadas, e um gringo
qualquer do Japão, da Suécia
ou do interior do Rio pode comprar até a véspera do Carnaval
uma fantasia da escola.
Na última vez em que eu
transmiti um desfile, falei para
a [cantora] Alcione: "Olha uma
ala da Mangueira toda branca,
só tem um negro!". E ela mesma balançou os dedos como se
dissesse: "Dinheiro". Pagou, levou. Você não vê mais a Mangueira, só na bateria. Nem na
comissão de frente, porque
agora elas têm bailarinas com
sapato de ponta. Inventaram
frescuras que..., sei lá, transformaram num espetáculo comercial da Broadway.
FOLHA - Essa comercialização é resultado do surgimento da Liesa [Liga
Independente das Escolas de Samba], em 1984?
PAMPLONA - Não foi só isso. Um
interesse geral fez com que
houvesse uma transformação
nas escolas de samba. Antigamente, cada ala representava
uma associação dentro da escola. O produto gerado era resultado da socialização do morro.
FOLHA - O Salgueiro é acusado de
ter iniciado a fase dos sambas acelerados com "Festa para um Rei Negro" [do refrão "Pega no ganzê/ Pega no ganzá"], de Zuzuca, em 1971.
PAMPLONA - Não foi o samba do
Zuzuca, não. Foi a inteligência
de gente que quer andar mais
rápido do que o relógio e depois
fica amarrando a escola olhando para o cronômetro. O Zuzuca foi um dos melhores compositores do Salgueiro e fazia
muito samba de quadra [que
não é de enredo]. Mas mataram
o samba de quadra, que era
uma preparação melódica que
os compositores faziam para
vir com o samba-enredo. Como
acabou, os sambas-enredo ficaram estandardizados, iguais.
FOLHA - É comum dizer que o sr.
inaugurou a era dos carnavalescos.
PAMPLONA - Não, não fui eu. Já
tinha o Julinho [Mattos], que
fazia o Paraíso do Tuiuti, a
Mangueira, tinha uma fábrica
de papel machê e fazia carro
alegórico para o país inteiro.
Teve o [Carlos Haraldo] Sörensen, que era profissional,
cobrava da Portela 2.000 cruzeiros por risco [desenho de
fantasia]. Ele não era amador
como sempre fomos no Salgueiro. Nunca levamos um tostão. Nem eu nem Arlindo [Rodrigues] nem João Trinta. No
Salgueiro, não. Depois, eles se
tornaram profissionais, compraram apartamento e eu não
fui para lugar nenhum.
FOLHA - De alguma forma, a TV
atrapalhou o Carnaval?
PAMPLONA - A TV não atrapalhou nada. Nenhum processo
de divulgação atrapalha, mesmo quando tem gente babaca
escrevendo ou narrando. Divulgação é fundamental.
FOLHA - E os bicheiros atrapalharam? Eles são criticados, mas Natal
[Natalino José do Nascimento,
1905-75], figura mítica da Portela,
era bicheiro.
PAMPLONA - O Natal, se fosse
padre, seria igual. Era um sujeito maravilhoso. Era bicheiro
por acaso. Fez 300 casamentos,
300 batizados... Era um cara de
verdade que atendia à região
dele [Madureira, zona norte].
FOLHA - Os bicheiros não são os vilões do Carnaval, então?
PAMPLONA - Não. O bicheiro
aproveitou a deixa para ser bem
recebido pelo prefeito. É questão de status. Tem uns que são
maravilhosos. O Anísio [Aniz
Abrahão David, presidente de
honra da Beija-Flor, hoje em
prisão domiciliar por suposto
envolvimento com caça-níqueis e lavagem de dinheiro]
não dá o menor palpite na Beija-Flor. Ele até segurava a barra
[financeiramente]. Mas o Joãosinho já disse que a Beija-Flor
não precisava de patrono, porque o que davam a Liga, o disco
[dos sambas-enredo] e a TV era
suficiente para o Carnaval.
FOLHA - Mas todo mundo quer patrocínio...
PAMPLONA - É porque todos
querem pôr dinheiro no bolso.
FOLHA - E como tem visto o renascimento do Carnaval de rua no Rio?
PAMPLONA - Ah, acho ótimo! Aí
o que dizia a [historiadora]
Eneida vira mais verdade ainda: o Carnaval não acaba, se
transforma. É Lavoisier. A Banda de Ipanema foi o primeiro
esforço, do Albino Pinheiro, e
se espalhou pelo Brasil. Agora
são os blocos. É maravilhoso. O
Carnaval não vai morrer nunca.
FOLHA - E o sr. sabe que vai ser homenageado pela Vila Isabel, não?
PAMPLONA - O que sei é que o
presidente [Wilson Vieira Alves, o Moisés] disse que sou um
merda, porque dei nota ruim
para a marchinha deles neste
ano [no jornal "Extra"]. [A homenagem] será à revelia [risos].
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