São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

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ENTREVISTA

FERNANDO PAMPLONA

Comercialização fez o Carnaval virar Broadway

Para ex-carnavalesco, patrocínios tiraram espontaneidade dos desfiles

ESCOLHIDO JURADO do desfile de 1959 por ser professor da Escola Nacional de Belas Artes, Fernando Pamplona viu a Acadêmicos do Salgueiro apresentar "Viagem Pitoresca Através do Brasil - Debret". Virou salgueirense imediatamente. "Todas as escolas vinham de uniforme, capa-e-espada, chapéu de Napoleão, falando de "Brasil, panteão de glórias". Quando vi o Salgueiro com um nome de artista, achei uma evolução fabulosa."
No ano seguinte, já era campeão com "Quilombo dos Palmares" e dava um novo significado à palavra "carnavalesco": a pessoa que cria o enredo e o desenvolve, pautando todo o trabalho da escola.
Após largar a função, em 1978, tornou-se crítico agudo da comercialização dos desfiles, dos quais garante não ser, há cinco anos, sequer telespectador. "Transformaram num espetáculo comercial da Broadway."
Pamplona, 82, faz suas críticas com mais sarcasmo do que ranço. É nesse tom que afirma não ter se interessado pela homenagem que a Unidos de Vila Isabel faria a ele, na noite passada, em seu enredo sobre o Teatro Municipal carioca -onde trabalhou. Seu Carnaval agora, diz, é na casa da filha, na região serrana do Rio, com a TV desligada. (LUIZ FERNANDO VIANA, da Sucursal do Rio)


FOLHA - Por que o sr. se afastou do Carnaval?
FERNANDO PAMPLONA -
O saco encheu. Em primeiro lugar, parei de fazer [desfiles de] escolas de samba porque era muito complicado. Foi em 1978. Depois eu continuei no [júri do prêmio] Estandarte de Ouro, do "Globo", e na TV Manchete. Mas a Manchete estava, dois anos antes de falir [a TV saiu do ar em 1999], pendurada nas imagens da Globo, e a Globo não estava transmitindo direito. Pegava o meio da Portela, ia para o princípio, do princípio para o fim, a gente dizendo uma coisa e a imagem mostrando outra... Então, denunciei isso no ar. E os caras da Globo exigiram que eu me desculpasse. Eu, em vez de me desculpar, me demiti no ar. No Estandarte fiquei um pouco mais.

FOLHA - Desde então, o sr. passa o Carnaval em Itaipava [região serrana do Rio]?
PAMPLONA -
Na serra, sempre. E procurando nem ligar a TV.

FOLHA - Por quê?
PAMPLONA -
Primeiro, porque até o barracão já me enjoava. Hoje é tudo maravilhoso, as facilidades são grandes. Mas, no meu tempo, a gente só trabalhava embaixo da ponte de São Cristóvão [zona norte], não havia dinheiro. Eu não sabia se as coisas iam ficar prontas, era muito agoniante. E, depois, houve uma transformação nas escolas que não me agradou.

FOLHA - O que não agradou?
PAMPLONA -
A comercialização. Começaram a comprar porta-bandeira, mestre-sala, pagar por mês. Começou a comercialização, principalmente, do samba-enredo. E veio a história dos patrocínios. O próprio carnavalesco perdeu a liberdade. A não ser a Rosinha [Rosa Magalhães, da Imperatriz Leopoldinense], que é ultrainteligente e, quando Campos [cidade do norte fluminense] pagou para fazer um enredo [em 2002], ela saiu com a antropofagia dos Goytacazes e foi para a Semana de Arte Moderna. Ela consegue driblar essa artificialidade. O próprio João [Joãosinho Trinta], no último Carnaval que fez [em 2003, pela Grande Rio], tinha a Vale até no título ["O Nosso Brasil que Vale"]. Descobriram que é um veículo de comunicação que rende mais do que comprar página de jornal e revista. Então está todo mundo em cima, principalmente os Estados. Por R$ 3 milhões você faz uma publicidade para 40 milhões de pessoas. As escolas de samba não sabem cobrar. Era para cobrar, no mínimo, R$ 10 milhões.

FOLHA - Mas, sem patrocínios e essa comercialização, não seria difícil que o Carnaval crescesse e surgisse, por exemplo, a Cidade do Samba?
PAMPLONA -
A Cidade do Samba é uma coisa maravilhosa. Mas acho que quem organiza o desfile resolveu acelerar muito o andamento da música. Com ele acelerado, perdeu-se a ginga, a síncope, o balanço. Hoje, 90% das escolas desfilam com marchinhas, inclusive a minha. O Salgueiro, há muito tempo, só tem marchinhas. Quem se salvava era a Beija-Flor, que vinha com samba, e a Unidos da Tijuca. Neste ano, elas embarcaram na marchinha também. A que está melhorzinha é a Grande Rio. O Salgueiro já ganhou um Carnaval com uma marchinha muito bonita: "Explode coração..." ["Peguei um Ita no Norte", em 1993]. Não é que a marcha seja feia. Mas não é samba.

FOLHA - Então, o sr. continua ouvindo os sambas-enredo?
PAMPLONA -
Você liga a televisão nesta época e está passando Carnaval. Não há como fugir.

FOLHA - O que, surgido nessa era de comercialização, foi positivo?
PAMPLONA -
Acho que foi só negativo. Perdeu a espontaneidade, a naturalidade. Anos atrás, uma grande personalidade me ligou: "Fernando, estamos convidando você para ver um desfile de protótis". Eu disse: "O que é protótis?". "É o modelo que a gente desfila." Eram protótipos. Aí você faz um desfile com modelos antes do Carnaval, com as fantasias todas prontas, industrializadas, e um gringo qualquer do Japão, da Suécia ou do interior do Rio pode comprar até a véspera do Carnaval uma fantasia da escola. Na última vez em que eu transmiti um desfile, falei para a [cantora] Alcione: "Olha uma ala da Mangueira toda branca, só tem um negro!". E ela mesma balançou os dedos como se dissesse: "Dinheiro". Pagou, levou. Você não vê mais a Mangueira, só na bateria. Nem na comissão de frente, porque agora elas têm bailarinas com sapato de ponta. Inventaram frescuras que..., sei lá, transformaram num espetáculo comercial da Broadway.

FOLHA - Essa comercialização é resultado do surgimento da Liesa [Liga Independente das Escolas de Samba], em 1984?
PAMPLONA -
Não foi só isso. Um interesse geral fez com que houvesse uma transformação nas escolas de samba. Antigamente, cada ala representava uma associação dentro da escola. O produto gerado era resultado da socialização do morro.

FOLHA - O Salgueiro é acusado de ter iniciado a fase dos sambas acelerados com "Festa para um Rei Negro" [do refrão "Pega no ganzê/ Pega no ganzá"], de Zuzuca, em 1971.
PAMPLONA -
Não foi o samba do Zuzuca, não. Foi a inteligência de gente que quer andar mais rápido do que o relógio e depois fica amarrando a escola olhando para o cronômetro. O Zuzuca foi um dos melhores compositores do Salgueiro e fazia muito samba de quadra [que não é de enredo]. Mas mataram o samba de quadra, que era uma preparação melódica que os compositores faziam para vir com o samba-enredo. Como acabou, os sambas-enredo ficaram estandardizados, iguais.

FOLHA - É comum dizer que o sr. inaugurou a era dos carnavalescos.
PAMPLONA -
Não, não fui eu. Já tinha o Julinho [Mattos], que fazia o Paraíso do Tuiuti, a Mangueira, tinha uma fábrica de papel machê e fazia carro alegórico para o país inteiro. Teve o [Carlos Haraldo] Sörensen, que era profissional, cobrava da Portela 2.000 cruzeiros por risco [desenho de fantasia]. Ele não era amador como sempre fomos no Salgueiro. Nunca levamos um tostão. Nem eu nem Arlindo [Rodrigues] nem João Trinta. No Salgueiro, não. Depois, eles se tornaram profissionais, compraram apartamento e eu não fui para lugar nenhum.

FOLHA - De alguma forma, a TV atrapalhou o Carnaval?
PAMPLONA -
A TV não atrapalhou nada. Nenhum processo de divulgação atrapalha, mesmo quando tem gente babaca escrevendo ou narrando. Divulgação é fundamental.

FOLHA - E os bicheiros atrapalharam? Eles são criticados, mas Natal [Natalino José do Nascimento, 1905-75], figura mítica da Portela, era bicheiro.
PAMPLONA -
O Natal, se fosse padre, seria igual. Era um sujeito maravilhoso. Era bicheiro por acaso. Fez 300 casamentos, 300 batizados... Era um cara de verdade que atendia à região dele [Madureira, zona norte].

FOLHA - Os bicheiros não são os vilões do Carnaval, então?
PAMPLONA -
Não. O bicheiro aproveitou a deixa para ser bem recebido pelo prefeito. É questão de status. Tem uns que são maravilhosos. O Anísio [Aniz Abrahão David, presidente de honra da Beija-Flor, hoje em prisão domiciliar por suposto envolvimento com caça-níqueis e lavagem de dinheiro] não dá o menor palpite na Beija-Flor. Ele até segurava a barra [financeiramente]. Mas o Joãosinho já disse que a Beija-Flor não precisava de patrono, porque o que davam a Liga, o disco [dos sambas-enredo] e a TV era suficiente para o Carnaval.

FOLHA - Mas todo mundo quer patrocínio...
PAMPLONA -
É porque todos querem pôr dinheiro no bolso.

FOLHA - E como tem visto o renascimento do Carnaval de rua no Rio?
PAMPLONA -
Ah, acho ótimo! Aí o que dizia a [historiadora] Eneida vira mais verdade ainda: o Carnaval não acaba, se transforma. É Lavoisier. A Banda de Ipanema foi o primeiro esforço, do Albino Pinheiro, e se espalhou pelo Brasil. Agora são os blocos. É maravilhoso. O Carnaval não vai morrer nunca.

FOLHA - E o sr. sabe que vai ser homenageado pela Vila Isabel, não?
PAMPLONA -
O que sei é que o presidente [Wilson Vieira Alves, o Moisés] disse que sou um merda, porque dei nota ruim para a marchinha deles neste ano [no jornal "Extra"]. [A homenagem] será à revelia [risos].


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