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São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 2003

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URBANIDADE

Ilustração Vincenzo Scarpellini
AVENIDA SÃO JOÃO Do alto do Banespa, pelas quatro direções, São Paulo transforma-se numa espécie de mapa de si mesma: não é preciso distinguir detalhes inúteis e, se for verdade que o instinto é uma forma de conhecimento a distância, que está para a inteligência como a visão está para o tato, torna-se possível captar a cidade sem pisar nela. Evocá-la sem entendê-la. Comprá-la sem pagá-la. (VINCENZO SCARPELLINI)


Esquina da saudade

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Quando André Sturm, diretor de uma distribuidora de filmes, soube que o cine Belas Artes estava com data marcada para fechar as portas, ele próprio se tornou candidato a virar personagem de um filme de aventura ou drama.
André faz parte da geração de paulistanos que reverenciaram a esquina da Consolação com a avenida Paulista. Na frente do Belas Artes, que exibia sofisticados filmes, brilhava o Riviera, então marco da resistência político-etílica contra a ditadura militar. A poucos metros dali, reinava a Tia Olga, onde jovens de classe média tiveram sua iniciação sexual com mulheres que, professorais, pareciam entender a insegurança juvenil. Nas redondezas, trabalhavam os astros da nascente televisão brasileira, com seus festivais (Record) ou novelas (Tupi).
Para os garotos judeus que frequentavam as sinagogas do bairro, era a chance da paradisíaca mistura, em tão pouco espaço, dos astros da TV com Deus e as mulheres.
Foram-se embora as celebridades, entre as quais Fernando Henrique Cardoso, José Dirceu, Caetano Veloso e Chico Buarque. Renato Meniscalco, proprietário do Riviera, lamenta nostálgico: "Não temos nem dinheiro para reforma".
André viu nessa decadência um desafio quando decidiu investir na recuperação do Belas Artes. Pretende entregar neste semestre duas salas, que terão uma programação "cult". Sabe que jamais conseguiria viver de bilheteria e, por isso, engrossou o movimento para reduzir os impostos dos cinemas de rua e valorizar espaços públicos. A prefeita Marta Suplicy aderiu à idéia. Na passagem, abandonada, debaixo da Consolação, ele planeja fazer uma espécie de museu ligado à arte cinematográfica. A entrada do cinema seria transformada num espaço de convivência, com um café e uma livraria.
Apesar dessa ofensiva, o risco é óbvio: os cinemas de rua estão morrendo ou lutando com dificuldades. Daí a procura de André por um redentor patrocínio, além de benefícios fiscais. "Posso estar movido pela emoção, mas não quero rasgar dinheiro. Muita gente não gosta de assistir a filmes em shoppings e vamos investir nessa fatia de mercado."
Mesmo que a paixão de André eventualmente não vire um bom negócio, já rendeu pelo menos um belo roteiro cinematográfico sobre a história da saudade de uma geração por uma esquina.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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