São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2010

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BARBARA GANCIA

Santa humildade


Pedi desculpas repetidas vezes em tudo que é língua que me veio: "Sorry, je m" excuse, scusami tanto..."

PASSEI A semana na companhia da mulher mais exuberante do mundo. Amiga de gente com quem fui me hospedar no sul da França, ela impressionou pela vivacidade, o vasto repertório, as línguas faladas e risadas as mais deliciosas, que teve a generosidade de compartilhar.
Para facilitar, acho que as pessoas deveriam ser apresentadas umas às outras como são introduzidas na imprensa: "Fulano de tal, profissão esta e aquela, idade assim e assado". Mas, na Europa, o pessoal não pergunta se você é casado ou solteiro, quantos anos tem ou como ganha a vida.
Europeus consideram qualquer pergunta pessoal bisbilhotice, "coisa de americano", uma forma artificial de tentar encurtar o caminho para a intimidade.
É comum transcorrer meses sem saber o básico sobre seu novo amigo europeu. Perguntar a que signo ele pertence, então, é querer vê-lo mudar de calçada na próxima vez que o cruzar na rua.
Pois passei a semana inteira com esta moça, uma libanesa que só soube depois ser cristã, ter 44 anos, trabalhar numa casa de leilões e viver há 22 anos em Nova York.
Há muito não via uma pessoa cujo alto-astral me contagiasse tanto. Como sou debochada por nacionalidade e curiosa por profissão, na última noite da viagem resolvi mandar a etiqueta às favas e entabular as perguntas que sempre interessam sobremaneira às tapuias.
"Você já foi casada, tem namorado?" Mulher linda, realmente, não estava entendendo ela ter passado a semana inteirinha sem mencionar ao menos um nome.
Foi aí que ela despejou a bomba: "Sim, fui casada com o amor da minha vida, meu primeiro namorado, mas nós perdemos nosso filho de três anos para o câncer e acabamos nos separando".
Meu queixo caiu no meu colo e uma pedra do tamanho do punho do Michael Jordan estacionou na minha garganta. Pedi desculpas repetidas vezes em tudo que é língua que me veio: "Sorry, je m" excuse, scusami tanto..."
Tomei um gole de água para impedir qualquer mudança na inflexão da voz, depois mais um de Coca enquanto pensava na coisa menos danosa a dizer. Queria achar um antídoto para a tristeza, a idiota que sou.
Finalmente consegui juntar três palavras numa frase: "Como você consegue?" Não sei se foi uma lágrima aquilo que vi espremido no canto do seu olho, já que ela esfregou rapidamente o rosto com as palmas e me disse: "Nos primeiros anos, tentei entender de alguma forma, mas hoje acho que é apenas uma questão de sorte".
Desandou a falar: "Se estivesse vivo, ele teria sete anos... Se estivesse vivo, estaria na escolinha... Se estivesse vivo, quem sabe o pai dele e eu não teríamos nos separado..."
Sob o céu da Provence, pensei na sorte que tocou a minha nova amiga. E lembrei que, para os franceses, o "hasard", que eles pronunciam como "azar", é o acaso.
Jurei que, chegando em casa, iria reler "Un coup de dés jamais n" abolira l" hasard" (Um lance de dados jamais abolirá o acaso), poema de Mallarmé que talvez me ajude a entender como essa mulher consegue ter a humildade de enxergar a vida como uma sucessão de fatos aleatórios sem qualquer significado.

barbara@uol.com.br

@barbaragancia

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