São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

A volta do falecido

 Família colombiana confunde cadáver careca com tio cabeludo. Um vendedor de sucata colombiano desapareceu por alguns dias e voltou para casa apenas para descobrir que sua família achava que ele estava morto e se preparava para enterrar um cadáver careca. Aladino Mosquera deixou sua casa num bairro pobre da cidade de Buenaventura sem avisar ninguém. Seus parentes foram chamados ao necrotério local para identificar um corpo. "Era exatamente igual a ele", disse uma sobrinha. Ela admitiu não ter percebido que o morto era careca, enquanto seu tio tem uma vasta cabeleira negra. Folha Online, 17.set.2002

A primeira surpresa foi a quantidade de gente na sua casa. Todos o olhavam com espanto, e até com terror, enquanto ele avançava pelo corredor em direção à sala de estar. E ali estava o caixão, as velas ao redor, as carpideiras e sua família, os irmãos, a sobrinha.
-O que é que está se passando aqui? bradou, furioso. -Que caixão é esse?
O irmão mais velho se aproximou dele, mirou-o atentamente.
-Mas como?- perguntou numa voz trêmula. -Você não estava morto, mano?
-Morto? Eu?- Ele não estava entendendo. -Como poderia eu estar morto? Você não está falando comigo? Eu não estou morto coisa nenhuma, estou mais vivo do que nunca. Quem é que inventou essa história?
A sobrinha então contou o que tinha acontecido: você sumiu, então ficamos pensando o pior.
-E as suspeitas se confirmaram quando a polícia nos chamou para ver um morto no necrotério. Fui lá. Era a sua cara. Mais: ninguém estava reclamando o cadáver. Concluímos que você tinha morrido. E agora o estamos velando.
-A mim, não -protestou o homem. -Vocês estão velando alguém, um intruso. Quero ver a cara desse sujeito.
Aproximou-se do caixão, mirou o morto atentamente.
-De fato- disse por fim. -Esse cara é parecido comigo. A não ser por um detalhe. Um pequeno detalhe. E sabem qual é?
E, como ninguém respondesse, ele berrou, fora de si:
-Esse homem é careca, diabos! Careca! Completamente careca! Enquanto eu tenho a mais vasta e mais bonita cabeleira da cidade de Buenaventura! Como é que vocês puderam nos confundir?
Os familiares, olhos fitos no cadáver, não respondiam. Finalmente a sobrinha aproximou-se dele:
-É verdade, tio. Você tem razão. Nós cometemos um erro. Explicável: afinal, você vivia sumindo, nunca deu a mínima para a gente. Tínhamos a certeza de que um dia iriam encontrá-lo morto. E, quando apareceu esse cadáver, bem, achamos que poderia ser você. Afinal, nada impede que alguém raspe a cabeça antes de morrer. Se você quis morrer careca, bem, era a sua vontade.
-Mas espere um pouco! -gritou o homem. -Eu não estou morto!
A sobrinha sorriu, triste:
-Isso depende da maneira de ver as coisas. Para nós, você está, sim, morto. Até já registramos seu óbito. E, cá entre nós, para você, será um bom negócio. Os credores vão desistir de cobrar o que você deve, seus desafetos vão esquecê-lo. Siga o nosso conselho: considere-se falecido e desapareça.
Ele pensou um pouco. Suspirou:
-Acho que você tem razão. Vou embora.
Já ia saindo, mas retornou:
-Escutem: vocês vão me enterrar como careca? Não façam isso, pelo amor de Deus. Atendam a meu último pedido.
Os familiares se olharam. A sobrinha sorriu:
-Não se aflija, tio. Agora mesmo vou comprar uma bela peruca preta. E lhe garanto: você vai ter, morto, a mesma cabeleira que teve em vida.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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