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MOACYR SCLIAR
A volta do falecido
Família colombiana confunde cadáver careca com tio cabeludo. Um
vendedor de sucata colombiano desapareceu por alguns dias e voltou
para casa apenas para descobrir que
sua família achava que ele estava
morto e se preparava para enterrar
um cadáver careca. Aladino Mosquera deixou sua casa num bairro
pobre da cidade de Buenaventura
sem avisar ninguém. Seus parentes
foram chamados ao necrotério local
para identificar um corpo. "Era exatamente igual a ele", disse uma sobrinha. Ela admitiu não ter percebido que o morto era careca, enquanto
seu tio tem uma vasta cabeleira negra.
Folha Online, 17.set.2002
A primeira surpresa foi a
quantidade de gente na sua
casa. Todos o olhavam com espanto, e até com terror, enquanto
ele avançava pelo corredor em direção à sala de estar. E ali estava
o caixão, as velas ao redor, as carpideiras e sua família, os irmãos,
a sobrinha.
-O que é que está se passando
aqui? bradou, furioso. -Que caixão é esse?
O irmão mais velho se aproximou dele, mirou-o atentamente.
-Mas como?- perguntou numa voz trêmula. -Você não estava morto, mano?
-Morto? Eu?- Ele não estava
entendendo. -Como poderia eu
estar morto? Você não está falando comigo? Eu não estou morto
coisa nenhuma, estou mais vivo
do que nunca. Quem é que inventou essa história?
A sobrinha então contou o que
tinha acontecido: você sumiu, então ficamos pensando o pior.
-E as suspeitas se confirmaram quando a polícia nos chamou para ver um morto no necrotério. Fui lá. Era a sua cara. Mais:
ninguém estava reclamando o cadáver. Concluímos que você tinha
morrido. E agora o estamos velando.
-A mim, não -protestou o
homem. -Vocês estão velando
alguém, um intruso. Quero ver a
cara desse sujeito.
Aproximou-se do caixão, mirou
o morto atentamente.
-De fato- disse por fim.
-Esse cara é parecido comigo. A
não ser por um detalhe. Um pequeno detalhe. E sabem qual é?
E, como ninguém respondesse,
ele berrou, fora de si:
-Esse homem é careca, diabos!
Careca! Completamente careca!
Enquanto eu tenho a mais vasta e
mais bonita cabeleira da cidade
de Buenaventura! Como é que vocês puderam nos confundir?
Os familiares, olhos fitos no cadáver, não respondiam. Finalmente a sobrinha aproximou-se
dele:
-É verdade, tio. Você tem razão. Nós cometemos um erro. Explicável: afinal, você vivia sumindo, nunca deu a mínima para a
gente. Tínhamos a certeza de que
um dia iriam encontrá-lo morto.
E, quando apareceu esse cadáver,
bem, achamos que poderia ser você. Afinal, nada impede que alguém raspe a cabeça antes de
morrer. Se você quis morrer careca, bem, era a sua vontade.
-Mas espere um pouco! -gritou o homem. -Eu não estou
morto!
A sobrinha sorriu, triste:
-Isso depende da maneira de
ver as coisas. Para nós, você está,
sim, morto. Até já registramos seu
óbito. E, cá entre nós, para você,
será um bom negócio. Os credores
vão desistir de cobrar o que você
deve, seus desafetos vão esquecê-lo. Siga o nosso conselho: considere-se falecido e desapareça.
Ele pensou um pouco. Suspirou:
-Acho que você tem razão.
Vou embora.
Já ia saindo, mas retornou:
-Escutem: vocês vão me enterrar como careca? Não façam isso,
pelo amor de Deus. Atendam a
meu último pedido.
Os familiares se olharam. A sobrinha sorriu:
-Não se aflija, tio. Agora mesmo vou comprar uma bela peruca
preta. E lhe garanto: você vai ter,
morto, a mesma cabeleira que teve em vida.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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